terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Manicómios, Prisões e Conventos - Erving Goffman

Por: Victor Simões

Introdução

               Erving Goffman nasceu em Manville, Alberta – Canadá em 11 de Junho de 1922 e faleceu em Filadélfia no Estado da Pensilvânia nos Estados Unidos da América no dia 19 de Novembro de 1982. Obteve o grau de bacharel pela Universidade de Toronto em 1945, tendo obtido os graus de mestre em 1949 e o de Doutor em 1953 na Universidade de Chicago, onde estudou tanto Sociologia como Antropologia Social. Em 1958 passou a integrar o corpo docente da Universidade da Califórnia em Berkeley, tendo sido promovido a Professor Titular em 1962. Ingressou na Universidade da Pensilvânia em 1968, onde foi professor de Antropologia e Sociologia. Em 1977 obteve o prémio Guggenheim. Foi presidente da Sociedade Americana de Sociologia, em 1981-1982. Efectuou pesquisas na linha da sociologia interpretativa e cultural, iniciada por Max Weber.

              Em La mise en scène de la vie quotidienne, Goffman desenvolve a ideia que mais identifica a sua obra: o mundo é um teatro e cada um de nós, individualmente ou em grupo, teatraliza ou é actor consoante as circunstâncias em que nos encontremos, marcados por rituais posições distintivas relativamente a outros indivíduos ou grupos. Goffman aplicou ao estudo da civilização moderna os mesmos métodos de observação da antropologia cultural.

              Decorridos 27 anos após a sua morte, parece ser pacífica e não ser objecto de discussão a mais-valia da contribuição teórica de Goffman para as ciências sociais. Segundo vários autores que analisaram e comentaram a sua obra (Giddens, 1984, 1988; Collins, 1988; Strong, 1988, e outros). Para alguns, ele foi um dos grandes sociólogos do pós-Guerra (Giddens, 1988, p. 250); para os mais entusiastas, o maior sociólogo da segunda metade do século XX (Collins, 1988, p. 41). Na disputa teórica dos anos de 1980 e 1990, que se dava em torno da constituição de uma teoria da prática, os seus estudos foram fundamentais. As noções de consciência prática e de agência na teoria da estruturação de Giddens (1984) muito devem às análises de Goffman sobre as ocasiões situadas e a co-presença em que parte substancial das informações veículadas depende da actividade corporal dos agentes sociais.

            Segundo Goffman a sua obra Manicómios, Prisões e Conventos, é o resultado de uma pesquisa de três anos de estudos de comportamentos em enfermarias dos Institutos Nacionais do Centro Clínico de Saúde, dos quais, um ano foi dedicado a um trabalho de campo no Hospital Elizabeths, em Washington, nos Estados Unidos.

            O objectivo da pesquisa foi conhecer e peceber o mundo vivênciado e percepcionado pelos internados em instituições totais. "Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” Goffman (2003, p.11):. O interesse fundamental de Goffman é chegar a uma versão sociológica da estrutura do eu. O autor afirma que o trabalho não sofreu influências ou restrições capazes de limitar a liberdade do pesquisador.

 
1. “Manicómios, Prisões e Conventos”


A obra trata de instituições totais de modo geral e foca o mundo do internado e não ao mundo do pessoal dirigente e está dividida em quatro ensaios:

O primeiro, "As características das Instituições Totais", analisa a vida em instituições totais trabalha com dois exemplos – hospitais para doentes mentais e prisões. Os demais são:

"A carreira moral do doente mental", são considerados os efeitos iniciais da institucionalização nas relações sociais que o indivíduo tinha antes de ser internado.

"A vida íntima de uma instituição pública", que se refere à ligação que o interno manifesta relativamente à sua cela e, a forma como os internados possam manter uma dada distancia entre si.

"O modelo médico e a hospitalização de doentes mentais", que reporta a uma chamada de atenção às equipas especializadas, para considerarem a perspectiva médica na apresentação, ao internado, dos factos relativos à sua situação.

O autor foca-se, essencialmente, no carácter fechado destas instituições, que pelas suas características e modo de funcionar não permitem qualquer contacto entre o internado e o mundo exterior, até porque o objectivo é excluí-lo completamente do mundo social de origem, de modo que o internado assimile totalmente as regras internas, evitando comparações, prejudiciais ao seu processo de "aprendizagem". Estas instituições podem ser divididas em cinco grupos:

- Um primeiro grupo, instituições criadas para cuidar das pessoas que, são incapazes e inofensivas; neste caso estão as diferentes instituições para cegos, velhos, órfãos e indigentes.

- Num segundo grupo, há locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não intencional; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais etc.

- Um terceiro grupo é organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais; cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração.

- Um quarto grupo, instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colónias etc.

- Um quinto grupo, os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos; entre exemplos de tais instituições, é possível citar abadias, mosteiros, conventos e outros claustros (Goffman 2003, p. 16-17).

              No interior das instituições habitam não apenas as equipas dirigentes, mas, também os internados, os prisioneiros, os que optam por uma vida solitária. Na passagem de uma vida no exterior para uma vida de confinamento espacial e social, o indivíduo passa por processos de modificação. Em qualquer dos casos, seja a institucionalização forçada do sujeito ou seja por sua iniciativa, inicia-se um processo de mortificação do eu inicial do sujeito, pelas concessões de adaptação às novas regras institucionais. “Na linguagem exata de alguma de nossas mais antigas instituições totais, começa a uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado “. (Goffman, 2003, p.24)”.O indivíduo é despido da sua personalidade real e a personalidade que lhe é induzida, não só pela instituição como por toda a sociedade. Goffman analisa ainda a questão do tempo vivido no interior da instituição, nomeadamente a organização do tempo dos internados ou prisioneiros, segundo actividades programadas milimetricamente, cuja função, para além de disciplinar os sujeitos, os inibe em termos de desenvolvimento pessoal.

O indivíduo “começa a passar por algumas mudanças radicais na sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele.
              Os processos pelos quais o eu da pessoa é mortificado são relativamente padronizados nas instituições totais”.(Goffman, 2003, p.24).
              A mortificação do eu, é a tensão entre o mundo doméstico e o mundo institucional: O primeiro processo de ‘mortificação do eu’ é a barreira posta pela instituição entre o interno e o mundo exterior. Uma ‘morte civil’, em cujos processos de admissão tenta-se obter a história de vida, partindo de um interrogatório do interno. A lógica da obediência e castigo compõe os processos de admissão como formas de iniciação.
              O segundo processo de ‘mortificação’ designa-se por mutação do eu: perda do nome, separação das posses, dos seus bens (deformação pessoal); maus tratos, marcas e perdas dos membros do corpo (desfiguração pessoal); violação do território do eu, invasão das fronteiras entre o ser dos indivíduos e o ambiente (exposição contaminadora). A violação é um modelo de contaminação interpessoal, o exame e o examinador violam o território do eu. Para suavizar essas mortificações – os sistemas de privilégios. Há três elementos deste sistema:
 a) as regras da casa;
 b) a obediência a essas regras;
 c) prémios e privilégios a quem obedece a essas regras. “A construção de um mundo em torno desses privilégios secundários é talvez o aspecto mais importante da cultura dos internados,(…)” (Goffman, 2003, p.51).

             Nas instituições totais dos três tipos estudadas por Goffman, as justificações para a mortificação do “eu”, são segundo Goffman, “simples racionalizações, criadas por esforços para controlar a vida diária de grande número de pessoas em espaço restrito e com pouco gasto de recursos. Além disso, as mutilações do eu ocorrem nos três tipos, mesmo quando o internado está cooperando e a direção tem interesses ideais pelo seu bem estar.” (Goffman, 2003, p.24).

             O sistema de privilégios e os processos de mortificação são as condições a que o internado se tem de adaptar, o mesmo internado poderá empregar diferentes táticas de adaptação nas diferentes fases da sua carreira moral, poderá também alternar entre diferentes tácticas ao mesmo tempo. Essas tácticas representam coerência de comportamentos, mas segundo o autor poucos são os internados que as seguem por muito tempo, preferindo a maioria o caminho designado por “ se virar”. Adoptando uma combinação de ajustamentos secundários, como conversão, colonização, e lealdade ao grupo de internados, de forma a obter a possibilidade máxima de não sofrer física ou psicológicamente.

             Nesta obra, Goffman conclui que muitas instituições totais, parecem funcionar apenas como depósito de internados, embora sejam vistas pelo público como organizações racionais, com planeamento e eficazes nos seus objectivos, estaremos assim perante um faz de conta, entre o que parece e o que na verdade é e se faz, este será o contexto básico do trabalho da equipa dirigente sendo certo que encontram diferentes contigências que a instituição tem de enfrentar e que a torna menos ineficiente. É reconhecido que as instituições ficam muitas vezes longe dos seus objectivos oficiais. Em relação à carreira moral, “ Cada carreira moral, e, atrás desta, cada eu, se desenvolvem dentro dos limites de um sistema institucional,(…) Neste sentido o eu não é uma propriedade da pessoa a que é atribuído, mas reside no padrão de controle social que é exercido pela pessoa e por aqueles que a cercam”. (Goffman, 2003, p. 142).

            Goffman, para desenvolver a sua análise vai apropriar-se de conceitos introduzidos por Mead: I – O “eu” espontâneo; Me – o “eu” socializado o autor centra-se, fundamentalmente, no “eu” socializado e as interacções do co-presença física, para tal, previlegia a observação “in loco” de modo a analisar os elementos quer físicos quer expressivos. Temos, deste modo, um estudo ao “nível micro”, em que o investigador interage no mesmo espaço onde estão os seus objectos de observação. Isto porque, segundo Goffman, é nestas interacções face a face, que vemos como os indivíduos representam o seu “eu”.

“ No ciclo usual de socialização de adultos, esperamos que a alienação e a mortificação sejam seguidas por um novo conjunto de crenças a respeito do mundo e uma nova maneira de conceber os eus.” (Goffman, 2003, p. 143).


Referências bibliográficas:

GOFFMAN, Erving ( 2003 ) – Manicómios, Prisões e Conventos, Brasil, Editora Perspectivas S.A.

GIDDENS, A. (1984), The constitution of society: outline of the theory of structuration. Berkeley, University of California Press.

GIDDENS, Anthony (2008) – Sociologia. 6ª edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. ISBN 978-972-31-1075-3.

FROIS, Catarina. Erving Goffman: desbravador do cotidiano. Anál. Social, jul. 2005, no.175, p.435-438. ISSN 0003-2573.

5 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Goffman deve ser repensado, bem como o interaccionismo simbólico. Há uma afirmação de Goffman - feita na secção final dessa obra - que cria alguma perplexidade: por detrás das máscaras não há eu, como se ele tivesse esquecido o eu espontâneo, o eu autêntico! O eu de Goffman é sobresocializado e nega no fundo a possibilidade de mudança: este é, na minha perspectiva, o ponto fraco da sua teoria; as instituições sociais acabam por ser todas elas totais. Devemos resistir a esse totalitarismo, reforçando o eu!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Associando este comentário ao meu post sobre Schopenhauer ou sobre Leonardo Coimbra, onde recupero a teoria de Bergson e de Heidegger para a mudança, a mortificação do eu pode ser pensada em termos místicos como mortificação do "eu quero" - a negação da vontade de domínio que move o sistema - o reino do mal. É certo que a mortificação de Goffman é ligeiramente diferente, mas podemos descobrir novas camadas ou sentidos ocultos da mortificação. Porém, quando fala de alienação, Goffman esquece que este conceito implica o sujeito. :)

victor simoes disse...

Olá Francisco, relativamente ao "eu" expontâneo concordo que na verdade Goffman parece esquecer-se deste "eu"( I ), o trabalho é centralizado no "eu" ( Me ) socializado, e nas interacções de co-presença física e in loco.

Continuação de uma boa semana

Um abraço

Unknown disse...

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Unknown disse...

Parece que os conceitos do autor sobre ''mortificação do eu'' na situação de confinamento, como exemplificadas em presídios, manicômios, etc, podem ser vistos sob uma abrangência psicodinâmica; pois então, seriam válidas também, para a vida civil. Em ambas, vê-se a mesma situação de confinamento, apenas muda-se a natureza do contingenciamento. Mesmo porque, no confinamento, para certos tipos de estrutura psíquica do indivíduo, vai-se repetir o original, qual seja, seu nativo berçário familiar, lhe assegurando proteção, até mesmo, de natureza física, mas geralmente e de forma sutil, emocional principalmente. Na forma civil, as restrições são ferozes em termos de sofrimento - as infames ''normas sociais'', deixando bem longe,outras restrições como a pujança da Natureza, a fragilidade orgânica, com as quais, já desenvolvemos mecanismos de convivência da alma e o mundo exterior, mais elaborados,estabelecidos na esteira evolucionária da família hominídea.As conquistas da civilização contam a história da imposição peremptória das leis de convivências sociais desde iniciou-se a formação de grupos familiares, ainda habitantes nas cavernas, sob a luz das fogueiras, em negociações pra a caça, bem antes da última glaciação, há cerca de mais de uma dezena de anos atrás.

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