quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Recensão da obra de Herbert Marcuse, "O Homem Unidimensional" ( I )


Por: João Valente Aguiar

Recensão da obra One-dimensional man de Herbert Marcuse: MARCUSE, Herbert (2002 [1964]) – One-dimensional man. London: Routledge. ISBN 0-415-28977-7. p.3-86

                                     I Capítulo

A publicação de “Homem Uni-Dimensional” (1964), foi um dos marcos intelectuais da segunda metade do século XX. Herdeiro e ex-membro da Escola de Frankfurt, onde pontificaram nomes como Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer ou Erich Fromm, Marcuse vai adoptar o marxismo numa linhagem muito diferente da cartilha soviética. Esta especificidade do percurso de Marcuse – que convém destacar a sua descoincidência do marxismo mais clássico de Lukacs ou, noutro nível, de Althusser – vai estar na origem, entre outros autores, da chamada Nova Esquerda. Mais à frente, voltaremos às implicações de Marcuse no desenvolvimento desta corrente política contemporânea. Para já, importa analisar o que o autor denomina de “sociedade uni-dimensional”, título da primeira parte desta obra.


Vivenciando o período dos chamados “30 anos gloriosos”, correspondentes a uma época histórica conhecida pela consolidação do Estado Providência e do clímax do fordismo enquanto forma de adequação da base tecnológica da grande fábrica à base económica do trabalho assalariado, Marcuse vai reflectir acerca da forma como o «indivíduo pode ser libertado do mundo do trabalho que lhe impõe necessidades alienantes» (Marcuse, 2002, p.5).



Na origem da alienação do ser humano, encontra-se a «forma como a base tecnológica está organizada nas sociedades industriais» (Marcuse, idem, p.5). A atribuição do primado da tecnologia na realidade social é ainda mais enfatizado quando o autor considera que o governo das sociedades industriais só é conseguido a partir «do uso organizado da tecnologia e da produtividade científica» (Marcuse, idem, p.6), ou seja, percebe-se a subordinação do poder político à máquina.



Portanto, neste primeiro capítulo: “As novas formas de controlo”[1], Marcuse vai, então, procurar fazer a crítica do controlo social como «a necessidade [para o sistema social] de manter liberdades tão ilusórias como a competição livre entre pessoas a um determinado preço, a liberdade de imprensa com censores contidos nela mesma, a livre escolha entre a marca x e a marca y» (Marcuse, idem, p.9). Deste modo percebe-se que a liberdade do indivíduo não é a múltipla escolha limitada a um stock pré-existente de alternativas iguais entre si, mas o que esse indivíduo de facto escolhe. Isto é, a «eleição livre dos mestres não vai abolir os mestres ou os escravos» (Marcuse, idem, p.10).



Contudo, Marcuse não vai operar uma crítica a esta falsa alternativa. Ao considerar que a equalização[2] das distinções de classe é um facto, a orientação da sua análise vai ser conduzida para a estrutura técnica e para a eficácia do aparato produtivo. Daqui resulta que o controlo tecnológico aparece como a causa e o motor da actividade social.



Este determinismo tecnológico, estamos em crer, funcionará, anos mais tarde, para a teorização de Negri acerca da sociedade-fábrica. Marcuse ao falar na «(...) invasão do espaço privado pela tecnologia», porque a «(...) produção em massa engloba o indivíduo no seu todo, mostrando ter deixado de estar confinada à fábrica» (Marcuse, idem, p.10), vai abrir portas às concepções metafísicas de António Negri – pensador italiano que tem feito furor em grande parte da esquerda ocidental com o livro Império – assentes na extensão das redes comunicacionais a todas as esferas sociais, onde tudo é consumo e produção.



Esta suposta fluidez entre as várias instâncias sociais criaria uma sociedade homogénea, onde o poder não está em lado nenhum porque está em toda a parte. No fundo, esta diluição das relações de poder no seio da sociedade mais não é do que a ocultação da contradição fundamental existente no campo económico: o antagonismo trabalho-capital. Sem dúvida que há relações de poder que perpassam todo o mundo social. Porém, a redução do espaço social total ao fenómeno de poder, omite a gradação na concentração do poder em diferentes campos sociais (por exemplo, o Estado é dotado de tipos de poder simbólico – já para não falar na coerção física – que não se encontram no campo das produções culturais).



O postulado marcusiano de que a tecnologia[3] penetra o corpo social em todas as suas dimensões sociais e as manipula, esquece as relações sociais que, por sua vez, permitem o enorme desenvolvimento tecnológico das sociedades industriais.



As sociedades industriais são, antes de mais, sociedades capitalistas. Quer isto dizer que aquilo que os indivíduos e as sociedades são, «(...) coincide com a sua produção, com o que produzem e também como produzem» (Marx, 1983a, p.9). Na verdade, resultam da forma como se colocam entre si na produção e distribuição perante os meios de produção económicos, políticos e culturais. Marx percebeu que «(...) é a repartição desigual, qualitativa e quantitativa do trabalho e dos seus produtos e, portanto, a propriedade» (Marx, idem, p.24) – ao separar os membros de uma sociedade em proprietários dos instrumentos de trabalho e seus usufrutuários para a produção de riquezas sociais (o valor) – é o germe que vai permitir o maior ou menor desenvolvimento das forças produtivas: tecnologia e maquinaria modernas. Trata-se da inscrição da tecnologia no lugar, no contexto próprio do estado de desenvolvimento das relações de produção. Assim, percebe-se a tecnologia em sede de dialogia dialéctica com as relações sociais de produção, constituindo uma certa autonomia relativa. Por conseguinte, retira-se a seguinte conclusão: a Internet, um robot ou um automóvel não têm em si uma capacidade de alienar os agentes sociais. Pelo contrário, é o uso social e a posição que determinado sujeito tem perante a máquina que pressupõe o domínio do homem pela técnica. Recorrendo a um exemplo concreto. Um trabalhador de uma fábrica de automóveis está numa situação de alienação ou estranhamento [Entfremdung] porque a sua actividade no local de trabalho está rebaixada a uma condição de apêndice da máquina, em ordem a produzir mais-valia. Como o princípio que governa o funcionamento das formações sociais contemporâneas – D-M-D’ – é a produção de valores de troca, em detrimento da satisfação das necessidades humanas, o trabalhador encontra-se destituído do controlo do processo de produção de bens. Portanto, o seu posicionamento relativamente à maquinaria é a de uma peça na engrenagem na criação de valor. Valor realizado no mercado e apropriado pelo capitalista.



Como corolário entendemos que a tecnologia é um instrumento mediador de uma relação social – o trabalho alienado – que a molda e lhe dá contornos mais ou menos aparentes, mas que não é o seu pressuposto de base. É um meio de concretização da relação de exploração do trabalho humano e não a essência da alienação.



É certo que Marcuse assume uma veia contestatária ao que se convencionou chamar de ordem vigente, mas – fruto da sua posição ontológica assumida na forma como se estruturam as sociedades[4] – a sua crítica fica-se pelas balizas do modo de produção capitalista, não procurando entrever eixos da sua superação e não expondo, ao mesmo tempo, alternativas societais[5].



Daí que a movimentação teórica do autor desemboque nos «(...) esforços do livre pensamento» e da «subversão radical do progresso tecnológico», a partir do nó górdio «da automação da produção» (Marcuse, idem, p.18), que libertaria tempo livre para usufruto dos indivíduos. Mais uma vez concordamos apenas parcialmente com Marcuse. Provavelmente porque o autor, por ter uma raiz marcadamente filosófica, não procura esmiuçar mais os conceitos que apresenta, tendo em vista uma mais profícua operacionalização. Por isso, entendemos que falta precisar melhor estes enunciados teóricos de Marcuse. Quer dizer, não é a automação – em traços gerais não é mais do que a crescente incorporação de capital fixo na produção de mercadorias – em si que determina um grau superior de tempo livre e de liberdade para as classes dominadas. Se assim fosse, num país pioneiro (e ainda hoje à frente no que diz respeito à robotização de largos sectores da produção) na implementação da automação, como é o caso do Japão, não se teria aumentado o horário semanal de trabalho das 48 para as 52 horas. A automação da produção só libertará tempo disponível para o ser humano num quadro e num contexto societal ausente da divisão manual e intelectual do trabalho e da subordinação do trabalho vivo (o trabalho proletário) ao trabalho morto (a acumulação incessante de capital).



Aí, as forças produtivas estarão ao serviço da humanidade como instrumentos capazes de impulsionar a criatividade intelectual e a destreza prática a um patamar qualitativamente mais elevado.

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