Suciologicus

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Crescimento e desenvolvimento

por Daniel Vaz de Carvalho
em resistir.info/ 11/02/2014


"Dizer que os interesses do capital e os interesses dos trabalhadores são os mesmos, equivale simplesmente a dizer que o capital e o trabalho assalariado são dois aspetos de uma mesma relação. E um se acha condicionado pelo outro, como o usurário pelo devedor, e vice-versa."

C. Marx, Trabalho assalariado e capital

Cartoon de Leon Kuhn. 1- A FALÁCIA DO "CRESCIMENTO E EMPREGO"

O governo e os corifeus da tragédia neoliberal exultam apregoando os "bons indicadores" do crescimento e do emprego. Mas a propaganda não passa de uma bela embalagem sem nada lá dentro. O PIB regride relativamente a 2012, cai para níveis de 2000 (há 14 anos!); o desemprego é mascarado com a emigração e o subemprego – trabalho parcial, por exemplo, de 1 a 10 horas semanais.

Em "Utopía 14", Kurt Vonnegut descreveu uma sociedade de alto nível tecnológico, dominada por uma camada desfrutando de elevados padrões de vida, face à grande maioria marginalizada e vivendo nos limites da subsistência. Admitindo por hipótese que alguma estabilidade económica e social fosse possível nesta fase do capitalismo, capitalismo senil, as políticas atuais configuram como objetivo este modelo de sociedade: uma elite tecnocrática, face a um proletariado na condição de "servo da gleba". Diga-se que o livro termina com uma revolução.

No Portugal do salazarismo houve crescimento e emprego associado à repressão, à miséria, a maior atraso relativo. Na América Latina, em países submetidos aos critérios do FMI e do neoliberalismo, impostos por sangrentas ditaduras, também houve pelo menos de início, crescimento e emprego com aumento da pobreza e da dependência externa.

Nos EUA, em dois anos da dita "recuperação económica", os 7% mais ricos aumentaram em 27% a sua riqueza, mas para os restantes 93% caiu 4%. O ganho acionista de 50% entre 2011 e 2013, à custa dos milhões pagos pelos contribuintes, foi na sua grande maioria para as mãos dos 5% mais ricos. Porém, o sistema de saúde é para quem pode pagar e segundo a "Feeding America" uma em cada seis pessoas passa fome.

Os instrumentos de gestão do Estado que democraticamente poderiam servir para o desenvolvimento são eliminados e a sociedade entregue aos "estabilizadores automáticos" dos "mercados", isto é, ao domínio da especulação e dos monopólios".

O período pós-guerra constituiu de facto uma fase de desenvolvimento económico nos principais países capitalistas, não se podendo ignorar que muito disto se devia a relações coloniais e neocoloniais com países de capitalismo dependente. Nessa altura o peso do Estado na economia atingia 50% ou mais do PIB e nos países mais avançados quase 60%; a FBCF por parte do Estado e o sector empresarial do Estado eram relevantes e considerados condição do desenvolvimento económico e social.

Tratava-se de mais uma das máscaras do estado capitalista. A derrota do nazi-fascismo, em que o grande capital tinha abertamente colaborado com os agressores em muitos países e a luta popular, aliada ao prestígio da URSS e das teses marxistas, obrigavam o sector capitalista a cedências para conservarem o essencial do seu poder.

De facto, como dizem Marx e Engels no "Manifesto", em capitalismo "a situação material do operário pode melhorar, mas à custa da sua situação social" e do seu empobrecimento relativo.

O neoliberalismo pode, transitoriamente, entre as crises, permitir algum crescimento, mas sem desenvolvimento. O desenvolvimento visa a máxima satisfação das necessidades sociais e a sustentabilidade ecológica. Necessidades sociais que serão tanto mais e melhor contempladas quanto menor for a desigualdade na repartição do rendimento e o aumento da produtividade social.

Numa economia sem desenvolvimento, como a neoliberal, o social é considerado ineficiente visto que não produz lucro visível a curto prazo e não reverte diretamente para o sector capitalista. As despesas do Estado só são consideradas eficientes se o sector capitalista tiver nelas interesse direto. Os apoios sociais, para além da retórica de propaganda, só não são totalmente retirados com receio das reações da opinião pública.

Numa visão de futuro para o planeta e no interesse de todos os povos, os países mais ricos e de alto nível tecnológico deveriam concentrar os seus esforços não na corrida armamentista e no "crescimento" sobretudo à custa dos mais pobres, mas no desenvolvimento de tecnologias que reduzissem os impactos ambientais e na melhoria das condições económicas e sociais de todos os povos. Mas esta evidência e exigência para a própria sobrevivência da humanidade, mais que uma utopia, trata-se de uma impossibilidade teórica em termos capitalistas, por muito que tal custe a ser reconhecido pela social-democracia/socialismo reformista.

2 -OS MITOS DO CRESCIMENTO

A decadência do sistema capitalista nesta fase neoliberal, derradeiro recurso para a queda da taxa de lucro, torna-se evidente ao verificarmos que apenas se fundamenta em mitos, negados pela realidade objetiva. A existência social destes mitos fica apenas a dever-se a intensa propaganda e à deliquescência ideológica da social-democracia/socialismo reformista. Destacamos alguns, sem a pretensão de análise exaustiva que pode ser encontrada em vários textos deste espaço.

O mito dos "mercados" corresponde à financeirização da economia, à sua entrega à especulação e usura, apoiada em paraísos fiscais, percorrida pela corrupção e pela fraude, suportada pelos bancos centrais (BCE, FED, etc.). Os "mercados" servem de arma de agressão social e opressão contra os povos por eles dominados, concretizada na chantagem dos juros e nos planos de austeridade, com ou sem troikas.

A eficiência capitalista , erroneamente dita privada, é outro mito. As grandes empresas mundiais são monstros burocráticos que só sobrevivem devido ao poder militar do imperialismo, suas agências económicas (FMI, BM, OMC, CE, BCE) e serviços conspirativos (CIA, agencias e ONG sob seu controlo, outros serviços secretos).

As grandes empresas não correm riscos de depender do mercado, por isso deslocam-se para áreas de lucro garantido – na energia, telecomunicações, distribuição alimentar, imobiliário e turismo de luxo. Tudo muito longe dos riscos que teoricamente o capital corre e que servem de argumento para os privilégios obtidos.

O grande capital não vai à falência, as empresas podem desaparecer, deslocalizar-se, serem absorvidas, vendidas por partes no interesse exclusivo dos principais acionistas, com indemnizações milionárias para os gestores Na banca, os governos assumiram a responsabilidade pela irresponsável gestão financeira, e fazem-na pagar aos trabalhadores. Os riscos de mercado estão reservados para as MPME.

Aqui radica a decantada eficiência capitalista, que acarreta despedimentos e degradação do nível de vida dos trabalhadores. O capital permanece intacto, reage à taxa ROE (taxa de lucro das ações) transforma capital produtivo em capital fictício.

Se a economia dita de mercado é tão eficiente, então como explicar as crises, por que não deixam falir os bancos insolventes, porquê a fraude e a corrupção, a promiscuidade com o dinheiro sujo do crime organizado, porquê oferecer rendas monopolistas ao grande capital?

Com o álibi do "crescimento e do emprego" são concedidos perdões fiscais, redução de impostos, benefícios fiscais e "incentivos" ao grande capital, que o PS apoia e a UGT aplaude. A falsa eficiência destes incentivos, resgates financeiros e outros processos de drenar a riqueza criada para os bolsos de uma ínfima minoria, está bem patente nos EUA.

Entre o final de 2007 e meados de 2010 o Fed proporcionou 16 milhões de milhões de dólares para "resgates" ao sistema bancário e grandes empresas nos EUA e na UE. Um roubo de US$16 milhões de milhões. É ingénuo esperar que a minoria responsável por um sistema que para ela funciona bem democratize a economia e a política. Esta é a tarefa central dos 99%.

O investimento externo é outro mito numa economia sem planeamento e com livre transferência de capitais e lucros para paraísos fiscais. Tem sido uma forma das transnacionais absorverem concorrentes (muitas vezes para os fecharem) num processo de concentração e monopolização em que de qualquer forma o país perde o controlo sobre os processos de desenvolvimento. As privatizações têm servido para o grande capital transnacional se alojar em sectores estratégicos da economia e em monopólios naturais exportando lucros, depauperando o país.

Um outro aspeto é a subcontratação a empresas que podem ser ou passar a ser do mesmo grupo, baseada na troca desigual, na sub e sobrefaturação. A estes subcontratos, embora por vezes consistam na fase mais importante do processo produtivo, cabe apenas uma percentagem mínima do preço de venda. Num caso estudado (telemóvel Nokia), esse valor não ia além dos 2%.

A flexibilidade laboral é um argumento a que a social-democracia/socialismo reformista e o sindicalismo colaboracionista se agarram para justificar em nome do crescimento e do emprego a redução de direitos laborais e salários reais. A flexibilidade representa o trabalhador sem direitos, sem autonomia, sem garantias nem no emprego nem no desemprego. O objetivo da flexibilidade é baixar salários, mas baixos salários provocam a estagnação económica. A ausência de "crescimento e emprego" resulta, sim, da falta de investimento produtivo e de desenvolvimento económico e social, consequência de uma sociedade hipertrofiada pelo grande capital monopolista, pela usura e pela especulação.

A ilusão tecnocrática é um outro mito pelo qual os problemas e contradições do capitalismo podem ser resolvidos pela tecnologia. Não é a tecnologia que define ou muda o padrão e o modo de funcionamento de uma sociedade – refira-se por exemplo, o nazismo ou as condições sociais nos EUA – mas sim as leis fundamentais da economia política que vigoram nessa sociedade.

O consumismo é outra ilusão propagandeada, a "modernidade" com precariedade, estagnação ou redução dos salários reais e consequente endividamento. Representa uma das formas mais evidentes das contradições do sistema capitalista, sem dúvida uma das mais perversas, baseada na alienação da consciência social e ambiental das pessoas. A contradição entre um crescimento constante, guiado pela maximização do lucro, num mundo de recursos finitos.

A sociedade espelho desta ideologia são os EUA: com 5% dos habitantes do planeta consome 25% dos recursos mundiais disponibilizados anualmente e polui na mesma proporção. Na realidade, "o capitalismo não tem compromisso com o progresso social, não será capaz de satisfazer as necessidades da população".

O free-trade, o mito da concorrência "livre e não falseada" (com monopólios!) obriga os países à exportação. Aos países tecnologicamente menos avançados resta a competição em nichos de mercado praticamente saturados, na base de baixos salários e trabalho sem direitos. O significado deste processo é exemplarmente definido por Marx em "Teorias da Mais Valia": "O comércio externo determina a forma social das nações atrasadas".

O "exportar mais" não passa de uma comodidade de raciocínio, um simplismo para semear ilusões. No estado de (não) desenvolvimento económico que Portugal atingiu, não se obtém "crescimento e emprego", isto é, aumento do mercado interno, com base nas exportações, mas é a partir do desenvolvimento do mercado interno que se desenvolvem as exportações.

A solidariedade europeia é outro mito, a que se agarrou a social-democracia/socialismo reformista para tentar mascarar a sua decadência ideológica. Mas não passa de uma ilusão, a "solidariedade europeia" está apenas ao serviço dos "mercados", não dos povos.

Maurice Allais criticou as políticas de mercado livre da UE, o tratado de Maastricht, previu a bolha imobiliária, opôs-se ao consenso de Washington e a todas as teses do neoliberalismo e monetarismo. Para M. Allais, contrariando as políticas da UE, "o mercado livre só é benéfico em circunstâncias especiais e os seus efeitos só são favoráveis entre regiões com níveis de desenvolvimento comparáveis". É uma evidência que mostra como na UE "o rei vai nu". Foi, apesar do seu prestígio, silenciado. A então jovem "estrela" do PSF, Jacques Atalli, conselheiro especial de Mitterrand, depois de Sarkozy, e algo parecido com F. Hollande (!); ele próprio se tornou financeiro, considerou estas ideias "estúpidas" e que "todos os obstáculos ao mercado livre são um fator que leva à recessão". Na realidade, com estes "inteligentes" a UE apenas conheceu recessão ou estagnação, desemprego e pobreza para níveis inqualificáveis.

3 – COMO CONCLUSÃO

Todas estas falácias soçobram perante as várias crises que simultaneamente o sistema traz ao mundo: a económica e financeira, a social, a ambiental, a militarista.

A eficiência capitalista é feita à custa da exploração imperialista e da troca desigual, da insegurança dos trabalhadores e da repressão, conduzindo a um processo de irreversível decadência; depredação ambiental e a expansão parasitária, estreitamente interrelacionadas.

As anémicas recuperações são seguidas de recaídas, a pobreza aumenta, os países capitalistas considerados mais ricos são Estados cada vez mais insolventes.

A social-democracia/socialismo reformista pretende resolver a crise económica e financeira – e apenas esta! – pelo empobrecimento da classe trabalhadora e a opção pelo militarismo (vide recentes resoluções na UE sobre o tema e a sua participação na agressão e desestabilização da Líbia, Síria, Ucrânia, para só mencionar estes).

O conceito de desenvolvimento opõe-se ao crescimento capitalista, baseia-se na maximização da eficiência económica tendo em conta os custos e benefícios sociais e não a maximização do lucro, o que só é possível com uma política não capitalista, visando a construção do socialismo.
Notas
1 – Ver De Carmona a Cavaco e à "salvação nacional"
2 – Recuperação para os 7 por cento , Paul Craig Roberts
3 – As máscaras do Estado capitalista, Avelãs Nunes, Ed. Avante, 2013.
4 – Atilio A. Boron, Socialismo para os ricos, mercado para os pobres ,
5 – European Competitiveness Report 2010, Brussels, 28.10.2010, SEC (2010) 1276, p.82.
6 – A crise económica mundial, a globalização e o Brasil, Edmilson Costa, Ed. ICP, 2013, p. 179.
7 – Maurice Allais (1911-2011) foi um liberal que se opôs totalmente ao neoliberalismo, sendo por isso marginalizado. Notável académico, recebeu o prémio (dito) Nobel de economia em 1988. Porém, praticamente, a partir daquela data apenas periódicos progressistas como o L' Humanité, publicaram seus textos. Allais opôs à especulação, à criação monetária pela banca, etc, no geral a todas as políticas económicas que hoje vigoram na UE. Sendo um defensor da comunidade europeia nunca admitiu a supressão sistemática das barreiras alfandegárias, atendendo aos desníveis económicos existentes. Nos seus estudos económicos fez entrar aspetos psicológicos, demonstrando a falsidade dos axiomas neoliberais. Uma das suas ideias interessantes foi a de opor-se ao "custo de oportunidade", mostrando que não se pode falar (em termos macroeconómicos) no custo de um bem ou de um serviço, mas sim do custo de uma decisão. O que nos leva, obviamente à avaliação no cálculo económico dos custos e benefícios sociais das decisões políticas. (ver mais em http://fr.wikipedia.org/wiki/Maurice_Allais#mw-navigation )
8 – The Death of Economics, Paul Ormerod, Faber and Faber, Londres, 1994, p.8

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“A causa da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo”



Por: François Houtart 
in:Brasil de Fato (20/01/2012)


François Houtart é sociólogo e ex-professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve trabalho na Ásia, África e América Latina.
 
(extrato da entrevista de Nilton Viana ao Prof. François Houtart)
Ler entrevista completa (clique aqui) em: Brasil de Fato 20-01-2012
 
"Em entrevista ao Brasil de Fato, Houtart fala também sobre as várias facetas desta crise, inclusive a crise alimentar, a qual, segundo ele, faz parte da mesma lógica."(...) (Nilton Viana) “A combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas”.
 
(...)"A causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo, que torna o capital motor da economia. E seu desenvolvimento – essencialmente, a acumulação – leva à maximização do lucro. Se a financeirização da economia favorece a taxa de lucro e se a especulação acelerou o fenômeno, a organização da economia como um todo continua dessa forma. Mas um mercado não regulamentado capitalista conduz inevitavelmente à crise. E, como indicado no relatório da Comissão das Nações Unidas, é uma crise macroeconômica."(...)

(...)"A primeira solução é a do sistema. Alguns, principalmente preocupados com a crise financeira, propuseram mudar e punir os responsáveis. Essa é a teoria do capitalismo (teoria neoclássica em economia), que vê elementos positivos na crise, porque eles permitem a liberação de elementos fracos ou corruptos para retomar o processo de acumulação em bases saudáveis. Atores são alterados, e não se muda o sistema. Evidentemente não é solução.
 
 A segunda visão é propor regulamentos. É reconhecido que o mercado regula a si mesmo e que os organismos nacionais e internacionais têm necessidade de executar essa tarefa. Os Estados e organizações internacionais devem ser envolvidos. O G8, por exemplo, propôs certos regulamentos do sistema econômico global, mas ligeiros e temporários. Em vez disso, a ONU apresentou uma série de regulamentações muito mais avançadas. Propôs a criação de um Conselho de Coordenação Econômica Global, em pé de igualdade com o Conselho de Segurança, e também um painel internacional de especialistas para acompanhar permanentemente a situação econômica global.
 
 Outras recomendações tratadas foram a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário e, também, maiores requisitos de reservas bancárias e um controle mais rígido das agências de notação de crédito. A profunda reforma das instituições de Bretton Woods foi incluída, bem como a possibilidade de se criar moedas regionais em vez de ter como referência única o dólar. Os regulamentos propostos pela Comissão Stiglitz para reconstruir o sistema financeiro e monetário, apesar de algumas referências a outros aspectos da crise, tais como clima, energia, alimentos – e apesar do uso da palavra sustentável para qualificar o crescimento – não têm a profundidade suficiente para fazer a pergunta: para que reparar o sistema econômico? Para desenvolver, como antes, um modelo que destrói a natureza e é socialmente desequilibrado?
 
É provável que as propostas para reformar o sistema monetário e financeiro serão eficazes para superar a crise financeira, e muito mais do que o que foi feito até agora, mas é suficiente para responder a desafios globais contemporâneos? A solução é dentro do capitalismo, um sistema historicamente esgotado, mesmo que tenha ainda muitos meios de adaptação. A gravidade da crise é tal que devemos pensar em alternativas, não somente em regulações."(...)
 
(...)
"Questionar o próprio modelo de desenvolvimento. A multiplicidade de crises que foram exacerbadas nos últimos tempos é resultado da lógica de mesmo fundo: uma concepção de desenvolvimento que ignora as “externalidades” (danos naturais e sociais); a ideia de um planeta inesgotável; o foco no valor de troca em detrimento do valor de uso; e a identificação da economia com a taxa de acumulação de lucro e do capital que cria, consequentemente, enormes desigualdades econômicas e sociais. Esse modelo resultou em um crescimento espetacular da riqueza global, mas seu papel histórico se perdeu, devido à sua natureza destrutiva e da desigualdade social que resultou. A racionalidade econômica do capitalismo, escreve Wim Dierckxsens, não apenas tende a negar a vida da maioria da população mundial como também destrói a vida natural.

Temos que discutir alternativas ao modelo econômico capitalista prevalecente hoje e os meios para rever o próprio paradigma (orientação básica) da vida coletiva da humanidade sobre o planeta, conforme definido pela lógica do capitalismo, que hoje é global. A vida coletiva é composta por quatro elementos que chamamos de base, porque as exigências são parte da vida de toda sociedade, desde as mais antigas até as mais contemporâneas: a relação com a natureza; a produção da base material da vida física, cultural e espiritual; a organização social e política coletiva; e a leitura do real e autoenvolvimento dos atores na sua construção da cultura. Ou seja, cada sociedade tem essa tarefa para realizar.(...)"
 
As alternativas necessariamente passam pelo envolvimento do conjunto da sociedade organizada, dos movimentos sociais.
(...) As alternativas são tão importantes que não vão chegar por si só. É somente pela pressão dos movimentos sociais, movimentos políticos também, que podemos esperar chegar a redefinir os objetivos fundamentais da presença humana no planeta e o desenvolvimento humano no planeta. E isso significa transformar a relação com a natureza. Passar da exploração ao respeito. Significa outra definição da economia.
 
 Não somente produzir um valor agregado senão produzir as bases da vida. Da vida física, cultural, espiritual de todos os seres humanos no planeta. Isso é a economia. Porém, isso não corresponde à definição do capitalismo. Também é preciso generalizar a democracia a todas as instituições, não somente políticas e econômicas mas também na relações humanas, relações entre homens e mulheres etc.
 
 É necessário também não identificar desenvolvimento com civilização ocidental e dar a possibilidade a todas as culturas, religiões, filosofias de participar dessa construção. Isso é o que chamo de construir o bem comum da humanidade, que é a vida; assegurar a vida, a vida do planeta e a vida da humanidade. Isso é um projeto alternativo, que pode parecer utópico. Porém não é utópico porque existem milhares de organizações e movimentos sociais que já trabalham para transformar esses aspectos da vida comum da humanidade, para melhorar a relação com a natureza, para ter outro tipo de economia, para ter uma participação, uma democracia que seja participativa e para renovar a cultura. Existem muitas iniciativas. Isso posso chamar de construção do socialismo. Porque socialismo não é uma palavra. É um conteúdo. E eu penso que devemos redefinir o conteúdo do socialismo."(...)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A Economia, o capitalismo e a guerra



 Por:Juan Torres López  em, Ganas di Escribir 06/09/2013






Juan Torres López (Granada, 1954) é um economista espanhol.
É membro do Conselho Científico da ATTAC Espanha e
Professor de Economia Aplicada da Universidade de Sevilha.
Mantém o website Ganas di Escribir e coordena o site dedicado
a informações económicas altereconomia.org
 
                                                                                                                                                                                                                                                                              "Não podemos construir um carro decente
 nem um televisor ...  já não temos siderurgia,
não podemos fornecer cuidados de saúde aos nossos idosos,
mas, isso sim, podemos bombardear o teu país até o fazer em merda, 
especialmente se o teu país está cheio de morenos...". George Carlin
 
 

Muita gente identifica o capitalismo com a existência dos mercados e até mesmo das empresas, mas isso é um grave erro. Ambos existiram muito antes do capitalismo e continuarão a existir quando ele desaparecer, embora seja verdade que em cada sistema económico funcionam com características e funções diversas.

A característica distintiva do capitalismo é que, primeiro, incorporou na esfera do mercado recursos antes utilizados fora dele, como o tempo de trabalho e a terra. Antes podia-se comprar ou vender às pessoas mas não adquirir o seu trabalho em troca de um salário e a terra conquistava-se ou transmitia-se, mas não se intercambiava em mercados como se faz no capitalismo. Esse facto, e o de que mais tarde foram mercantilizadas até mesmo as expressões mais íntimas da vida humana e social, fazem com que o capitalismo se distinga não por haver criado, como às vezes se acredita equivocadamente, a economia de mercado, mas a sociedade de mercado. E, portanto, submeter toda a vida social no seu conjunto à ânsia do lucro.

A utilização do trabalho assalariado e de grandes volumes de capital (físico e em dinheiro) no seio das empresas permite multiplicar a capacidade de produção e gerar uma grande acumulação que resultou, é justo dizê-lo, num progresso inegável. Mas, ao mesmo tempo, cria contradições fortes e problemas sociais muito graves.

Embora possa parecer um simples jogo de palavras, o que acontece no capitalismo é que para poder obter lucros há que obter cada vez mais lucros, o que obriga a produzir continuamente e a fazê-lo com cada vez menos custo. Basta que não cresça o investimento, mesmo que não caia, não só estagnam os rendimentos e os lucros como também se reduzem multiplicadamente.

Mas, para obter cada vez mais lucros produzindo sem parar, é preciso reduzir ao máximo o custo salarial. Isso muitas vezes provoca a falta de sintonia entre o preço que se queria pagar pelo trabalho e a possibilidade de vender tudo o que se põe á venda. Se os capitalistas fossem tão numerosos que pudessem comprar tudo o que produzem seria possível pagar aos trabalhadores uma ninharia, mas se estes são os que compram a maior parte da produção, como na realidade ocorre, acontece que, à medida que se lhes paga menos menor é a capacidade global da economia para comprar a produção. Isso significa que, queiram ou não, quando os capitalistas poupam nos salários algum pode ganhar mais, individualmente, mas, em geral, o que provocam é que se esgote a capacidade geral de absorver a produção que geram entre todos. E daí vem a maioria das crises que, de forma recorrente, vêm ocorrendo desde que o capitalismo existe.

Para evitar isso os capitalistas têm de recorrer a vários remédios (que não vou comentar aqui) e um deles é conseguir que a sua produção seja adquirida por quem não depende do salário para comprar, principalmente o sector público. É mais um paradoxo do capitalismo: os capitalistas rejeitam a actividade estatal mas apenas quando favorece outros, porque constantemente reivindicam ao sector público que adquira o máximo da sua produção ou que salve as empresas quando a sua estratégia de poupar salário produz uma crise.

Uma dessas vias é o gasto militar. Praticamente todas as grandes empresas mundiais, sem excepção, têm uma boa parte de seus negócios dedicada a fornecimento de bens ou serviços ao Estado e, mais especificamente, às suas forças armadas. É uma forma muito rentável e não dependente de salários para realizar a sua produção. E não importa que a produção militar, por vezes, se vá simplesmente armazenando ou que destrua recursos quando se utiliza, porque sob o capitalismo a produção não é levada a cabo em função de ser mais ou menos útil, mas que proporcione lucros.

É por isso que se estimula o crescimento contínuo dos gastos militares, ainda que já seja tão alto (1,33 milhões de milhões de euros em 2012) que até seja claramente desnecessário, pois muitíssimo menos que isso seria suficiente para destruir várias vezes todo o planeta. Uma despesa tão alta, irracional e desproporcionada (ou melhor, um negócio tão sumarento) só pode ser justificada se se generaliza a ideia e se convence a população de que vivemos em constante perigo e que há inúmeros inimigos prontos a nos atacar, quando na verdade o que se passa não é outra coisa que o desejo incontrolável de ganhar mais e mais dinheiro por parte das grandes empresas multinacionais.

Todos sabemos que a grande maioria dos conflitos bélicos que se verificaram na história da humanidade deveram-se a razões económicas e também agora é o caso. As últimas guerras no Iraque ou no Afeganistão, ou aquelas em menor escala que se desenvolvem em outras partes do mundo, têm a sua origem, cada vez menos dissimulada, em interesses económicos. Mas, além disso, o que acontece no capitalismo é que a guerra e os gastos militares não servem apenas os interesses económicos e na verdade converteram-se num interesse económico em si mesmo.

No capitalismo, a guerra não é apenas uma maneira de produzir satisfação e dar poder a quem a vence, como sempre, mas também se recorre a ela para resolver os problemas produzidos pela ânsia de lucro que lhe é inerente e as contradições derivadas da tentativa contínua para reduzir salários.

A conclusão é óbvia. Ainda que para se saber o que está por trás e o porquê das guerras sempre tenha sido preciso descobrir os nomes daqueles que dela se beneficiam, hoje em dia é também necessário entender como funciona uma economia que só visa o lucro privado de uma parte da sociedade à custa dos rendimentos dos demais. E a previsão subsequente é igualmente óbvia: enquanto isto ocorrer, enquanto o capitalismo sobreviver e a estratégia económica dominante seja poupar nos salários, não vão deixar de rufar os tambores da guerra nem se acabarão de contar os mortos que produz.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Capitalismo contemporâneo, imperialismo e agressividade (II)


Por: Edmilson Costa
In: Resistir info 6/09/2013
Doutorado em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor de Imperialismo (Global Editora, 1987), A política salarial no Brasil (Boitempo Editorial, 1987), Um projeto para o Brasil (Tecno-Científica, 1988), A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular, 2009) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (no prelo), além de ter ensaios publicados no Brasil e exterior.

Imperialismo, crise e guerra Essa conjuntura em que as finanças hegemonizaram a dinâmica da nova fase do imperialismo criou uma enorme desproporção entre o setor real da economia, aquele que produz e gera valor, e a órbita financeira, que não cria riqueza nova. Para se ter uma idéia, antes da crise sistêmica global que emergiu com a queda do Lehmann Brothers, o volume de recursos que circulava na órbita financeira era mais de 10 vezes maior que a produção mundial, fato que por si só já prenunciava uma crise de grandes proporções, uma vez que uma situação dessa ordem não poderia se sustentar por muito tempo, afinal a produção do mais-valor era deveras insuficiente para remunerar os lucros do setor financeiro.

Ao mesmo tempo em que avançava sobre os arcabouços do Estado do Bem Estar Social, o patrimônio público e os direitos e garantias dos trabalhadores, o imperialismo incrementava sua política agressiva, buscando combinar aceleradamente uma recuperação das taxas de lucro na área produtiva, a apropriação da renda mundial pelas finanças e o fortalecimento do complexo industrial militar, conjuntura que foi facilitada pelo colapso da União Soviética.

Assim, Reagan invadiu Granada, o Panamá, onde depôs e prendeu o presidente local e insuflou guerras regionais como na Nicarágua. A política guerreira continuou nas outras administrações, independentemente se democratas ou republicanas, uma vez que o desenvolvimento do complexo industrial militar é condição imprescindível para a manutenção do imperialismo. A escalada guerreira continuou com a invasão ao Iraque, sob o pretexto de que Saddan Hussein possuía armas de destruição em massa, o que depois se verificou que era uma falsidade. Na verdade, o que os Estados Unidos objetivavam era se apossar das imensas jazidas de petróleo daquele país.

Vale ressaltar que o imperialismo está tão dependente da indústria armamentista que, sem a produção de armas, não só o complexo industrial militar iria à falência, mas o próprio sistema imperialista entraria em colapso, uma vez que parcela expressiva de sua indústria está ligada à cadeia de produção das armas. Isso demonstra também o nível de degeneração a que chegou o imperialismo contemporâneo: só consegue continuar respirando se mantiver e desenvolver a indústria da morte.

Mas o acontecimento que proporcionou as condições objetivas para um salto de qualidade na agressividade imperialista dos Estados Unidos foi o ataque às torres gêmeas. Este atentado foi o mote que o governo Bush encontrou para institucionalizar e desenvolver novas facetas de sua política guerreira, agora sob o pretexto de combate ao terrorismo. Na verdade, com a chamada política antiterrorista o imperialismo militarizou a política e impôs ao mundo uma agenda de luta antiterrorista que se desdobrou não apenas na invasão ao Afeganistão, mas também na violação ao direito internacional, à soberania dos países, a construção de exércitos privados para realizar o trabalho sujo nas guerras contra povos e organizações contrárias à política norte-americana no mundo.

O mundo tomou conhecimento estarrecido das torturas nas prisões de Abu Ghriab e de Guantánamo, dos seqüestros e assassinatos de líderes contrários à política norte-americana e das prisões clandestinas ao redor do mundo. Ao contrário do que se poderia imaginar, o governo norte-americano justificava essas ações como parte da luta anti-terrorista, necessário para a proteção de seus cidadãos. O então vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, afirmou sem cerimônia em entrevista aos meios de comunicação que os métodos utilizados para obter informações (as mais bárbaras torturas) livraram o povo norte-americano de vários atentados.

O ensandecimento chegou a tal ponto que o secretário de Justiça dos Estados Unidos não só justificou abertamente a tortura como buscou fórmulas para legalizá-la. Todas essas ações eram de conhecimento do ex-presidente Bush, que inclusive assinava resoluções secretas para que os agentes pegos em flagrante não fossem punidos judicialmente. Por essas medidas se pode avaliar o nível de degeneração moral a que chegou o imperialismo: não se tratava de ações isoladas de funcionários estressados no teatro de operações, mas de ordens da própria cúpula imperialista que nesta fase do capitalismo perdeu qualquer referência em relação à humanidade.

Quem imaginava que o imperialismo iria reduzir sua máquina militar com a queda da União Soviética se enganou. O imperialismo está muito mais agressivo atualmente que no passado e possui hoje a mais poderosa e sofisticada máquina militar que o planeta já teve conhecimento. Porta-aviões gigantescos, submarinos atômicos, aviões invisíveis, bombas guiadas a laser, superbombardeiros, frota de aviões não tripulados (drones), helicópteros sofisticados, tanques de última geração, além de mais de 500 bases militares espalhadas pelo mundo e um aparato de espionagem maior do que as pessoas que vivem hoje em Washington. Tudo isso para sustentar a política do grande capital.

No entanto, a crise sistêmica mundial veio adicionar mais um ingrediente fundamental para a política agressiva do imperialismo. Desesperado diante da dramática situação econômica, da recessão, do desemprego crônico e dos protestos que estão ocorrendo pelo mundo contra a os ajustes determinados pelo capital, o governo norte-americano vem realizando provocações contínuas contra o Irã, a Coréia do Norte e, recentemente, conseguiu envolver vários países da União Européia em sua aventura militar na Líbia, onde destruíram fisicamente o País, mataram seus principais dirigentes e agora começam a se apossar das imensas jazidas de petróleo locais, sob o olhar complacente dos títeres que colocaram no poder.

Agora os Estados Unidos se voltam para Síria. O cenário foi montado para que a história se repetisse, mas a resistência do exército sírio, que desalojou os mercenários de várias regiões do País, derrotou essa primeira ofensiva imperialista. Derrotado o campo de batalha, os Estados Unidos tentaram legalizr a invasão, mas a Rússia e a China vetaram uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que abria espaço para a intervenção no País. Agora, estamos na iminência de uma invasão da Síria, sob o pretexto bizarro de que o governo teria lançado armas químicas contra a população, quanto se sabe que este episódio foi montado pela CIA para justificar a agressão. Desesperado, sem apoio internacional que esperava, o imperialismo pode realizar a intervenção a qualquer momento, mas as consequências podem ser dramáticas, tanto para o povo sírio, quanto para o Oriente Médio e para o próprio imperialismo, inclusive com o aprofundamento da crise sistêmica global no interior dos Estados Unidos.

Como a política guerreira já é uma necessidade do imperialismo para desenvolver suas forças produtivas, nas épocas de crises profundas como a que estamos presenciando agora, a fúria belicista do imperialismo se torna ainda maior. Por isso, pode-se esperar tudo nesta conjuntura, pois o imperialismo está ferido e vai querer sair da crise de qualquer forma, nem que para isso coloque em xeque a existência da própria espécie humana. Para a humanidade, resta uma saída que vai significar sua própria sobrevivência: derrotar o imperialismo, superar o capitalismo e construir uma outra sociabilidade sobre os escombros desta velha ordem.
Bibliografia consultada Bukharine, N. O imperialismo e a economia mundial. Coimbra: Centelha, 1976.
Costa, E. A globalização e o capitalismo contemporâneo. (São Paulo: Expressão Popular, 2009)
--------------- Imperialismo. São Paulo: Global Editora, 1986.
Lênin, V. Imperialismo fase superior do capitalismo. Lisboa: Avante, 1976.
Luxemburg, R. A acumulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Hilferding, R. O capital Financeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1985
Hobson, J. A. A evolução do capitalismo. São Paulo: abril cultural, 1985
Para uma melhor compreensão dos clássicos do imperialismo, consultar: Hobson, A Evolução do capitalismo (Nova Cultural, 1983); Hilferding, O capital financeiro (Nova Cultural, 1938); Lênin, Imperialismo, fase superior do Capitalismo (Avante, 1984); Rosa de Luxemburg, A acumulação do Capital (Nova Cultural, 1983);e Bukharin, O imperialismo e a economia mundial (Centelha, 1976). Para uma versão mais popular, consultar Edmilson Costa, Imperialismo (Global, 1989).

domingo, 8 de setembro de 2013

Capitalismo contemporâneo, imperialismo e agressividade ( I )

Por: Edmilson Costa
 
In: Resistir info 6/09/2013
Doutorado em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor de Imperialismo (Global Editora, 1987), A política salarial no Brasil (Boitempo Editorial, 1987), Um projeto para o Brasil (Tecno-Científica, 1988), A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular, 2009) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (no prelo), além de ter ensaios publicados no Brasil e exterior.
 
 
 
O imperialismo é um fenômeno identificado pelos clássicos desde a segunda metade do século XIX e significou a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista e a emergência de uma nova classe social, a oligarquia financeira. Nessa nova fase do capitalismo, onde os trustes e cartéis passaram a dominar as economias de cada País e, posteriormente, a economia mundial, um conjunto de fenômenos novos vêem marcar esta fase do desenvolvimento deste modo de produção, especialmente a partilha econômica e territorial do mundo entre os principais centros imperialistas, quando as potencias capitalistas ocuparam e passaram a colonizar parte considerável da África, Ásia e América Latina.

Esse movimento do capital monopolista tinha como objetivo transformar essas regiões em retaguarda especial do imperialismo, fonte de matérias-primas, mercados para a venda de mercadorias, esferas de aplicação do capital, fonte de rendimentos monetários, espaços militares estratégicos e reserva de mão de obra para as metrópoles. Com essa estratégia, as regiões colonizadas se transformaram em pilares fundamentais para o desenvolvimento da produção capitalista.

Com o domínio econômico e político do mundo, tornou-se mais fácil ao grande capital monopolista hegemonizar o aparelho de Estado, que passou a realizar sua política levando em conta fundamentalmente os interesses dessa nova classe social. Em outras palavras, o Estado relevou a um segundo plano os interesses gerais do capital para se transformar em instrumento da oligarquia financeira e de seus monopólios.

Mas o desenvolvimento do capitalismo e a consolidação dos monopólios não eliminou a concorrência, apenas a colocou em novo patamar. Os monopólios continuaram a travar uma dura luta pela partilha das esferas de influência. Essa luta por mercados e controle das fontes de matérias primas se tornou a causa principal causa das guerras, pois os monopólios pressionavam seus respectivos governos para aventuras militares visando uma nova correlação de força na partilha econômica do mundo. A primeira e a segunda guerra mundial foram em grande parte fruto da ganância do capital monopolista.

Após a segunda guerra mundial e, especialmente a partir dos anos 60, com a descolonização, o capital monopolista passou por transformações extraordinárias, pois a própria necessidade de expansão o impulsionou a uma nova relação entre centro e periferia. A partir de então, as corporações transnacionais, mediante a implantação de filiais produtivas na periferia, começaram a extrair generalizadamente o valor fora de suas fronteiras nacionais, ou seja, passaram a produzir fisicamente nas regiões até então produtoras de matérias primas, enquanto o sistema bancário também se internacionalizava.

Esse fenômeno da mundialização da economia, conhecido como globalização, transformou o capitalismo num sistema mundial completo, constituindo-se assim uma nova fase do imperialismo, pois agora o capital monopolista tornaria o planeta numa esfera única de produção, financiamento e realização das mercadorias, e a própria oligarquia financeira passaria a explorar diretamente os trabalhadores do centro e da periferia. Com a apropriação do valor fora das fronteiras nacionais a burguesia imperialista tornou-se uma classe exploradora direta do proletariado mundial.

"Até o período anterior à globalização, o capitalismo era completo apenas em relação a duas variáveis da órbita da circulação – o comércio mundial e a exportação de capitais. Mas, ao expandir a globalização para as esferas produtiva e financeira, bem como para outros setores da vida social, o sistema unificou globalmente o ciclo do capital, fechando assim um processo iniciado com a revolução inglesa de 1640" (Costa, 2002).

Esta nova fase do imperialismo viria a ganhar contornos mais definitivos com a ascensão dos governos Reagan e Tatcher, respectivamente nos Estados Unidos e Inglaterra. Aproveitando-se da crise do keynesianismo, desenvolveram uma ofensiva mundial no sentido de impor ao mundo a agenda neoliberal, que rapidamente se transformou em política oficial nos países centrais e, posteriormente, se espalhou para os outros países capitalistas.

A nova agenda invertia os fundamentos típicos da regulação keynesiana e em seu lugar colocava na ordem do dia o mercado como instrumento regulador das novas relações econômicas e sociais, a desregulamentação da economia, as privatizações das empresas estatais, liberalização dos mercados e dos fluxos de capitais, cortes nos gastos públicos e nos fundos previdenciários, além de uma ofensiva contra direitos e garantias dos trabalhadores.

Essas novas diretrizes produziram enorme impacto na dinâmica do capitalismo: o setor mais parasitário do imperialismo passou a hegemonizar as relações econômicas e políticas no interior dos governos neoliberais e impor ao mundo o primado das finanças globalizadas, estimuladas pela liberalização financeira e irrestrita mobilidade dos capitais. A partir daí este setor da oligarquia financeira subordinou todas as outras frações do capital e impôs a lógica das finanças não só para os negócios financeiros, mas também para as empresas produtivas e para o Estado, cujas receitas orçamentárias foram capturadas em grande parte por essa fração do capital.

Ancorados pelas tecnologias da informação cada vez mais desenvolvidas, pela generalização dos computadores e da internet, o pólo financeiro do capital imperialista transformou o mundo num imenso cassino especulativo, no qual os novos produtos financeiros foram sendo criados numa velocidade proporcional à criatividade do sistema liberalizado, num frenesi especulativo que se retroalimentava como numa dança de doidivanas.

Nessa nova lógica, a captura da renda mundial deveria encilhar todos os setores da economia, que agora passariam a operar a partir da lógica das finanças. Assim, as empresas consolidaram a reestruturação produtiva, com produção sem gordura, círculos de controle de qualidade, qualidade total, restrição à atividade sindical, tudo isso para ampliar as taxas de lucro e aumentar a distribuição de dividendos para os acionistas, ávidos por lucros semelhantes aos da órbita financeira.

Os Estados também caíram na malha da apropriação financeira, em função do endividamento realizado a taxas de juros elevadas. Dessa forma, foram obrigados a comprometer parcelas cada vez maiores dos orçamentos para pagar os serviços da dívida. Como esses serviços exigiam cada vez mais recursos, os Estados cortaram os gastos públicos, salários de funcionários e verbas sociais para atender o apetite voz do pólo financeiro do imperialismo. (,,,)
Continuação deste texto em 10/09/2013
 
 
 
 
Bibliografia consultada Bukharine, N. O imperialismo e a economia mundial. Coimbra: Centelha, 1976.
Costa, E. A globalização e o capitalismo contemporâneo. (São Paulo: Expressão Popular, 2009)
--------------- Imperialismo. São Paulo: Global Editora, 1986.
Lênin, V. Imperialismo fase superior do capitalismo. Lisboa: Avante, 1976.
Luxemburg, R. A acumulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Hilferding, R. O capital Financeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1985
Hobson, J. A. A evolução do capitalismo. São Paulo: abril cultural, 1985
Para uma melhor compreensão dos clássicos do imperialismo, consultar: Hobson, A Evolução do capitalismo (Nova Cultural, 1983); Hilferding, O capital financeiro (Nova Cultural, 1938); Lênin, Imperialismo, fase superior do Capitalismo (Avante, 1984); Rosa de Luxemburg, A acumulação do Capital (Nova Cultural, 1983);e Bukharin, O imperialismo e a economia mundial (Centelha, 1976). Para uma versão mais popular, consultar Edmilson Costa, Imperialismo (Global, 1989).

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Mundo dos Homens - Trabalho e Ser Social

Sugestão de leitura:

Autor: Sérgio Lessa
ISBN: 978-85-65999-01-4
Edição: 3ª – revista e corrigida
Páginas: 254



" É um verdadeiro prazer para um estudioso europeu se deparar com um livro como este de Sergio Lessa. Na Europa, após 1989, os estudos que se referem ao socialismo estão sob uma forte contração. É necessário voltar-se à América Latina, notadamente ao Brasil, para encontrar ainda intacto, talvez fortalecido, o zelo dos estudos e pesquisas de há um tempo, zelo do qual o livro de Lessa está entre os exemplos mais felizes. Bom conhecedor e divulgador da última grande obra teórica de Lukács, Para uma ontologia do ser social, Lessa tem a capacidade e a inteligência de ligar o estudo da teoria às suas repercussões sobre a prática, sobre os problemas da vida dos homens, sobre a sociedade em geral. A Ontologia de Lukács aponta no trabalho o modelo de toda prática social; Lessa tira disto inspiração para argumentar com perícia acerca de todo o complexo problemático (valoração, alienação, liberdade, etc.) que socialmente procede deste modelo. Deste modo seu livro vai ao encontro de variados interesses: não apenas aos interesses do público universitário e dos especialistas, mas também daqueles que buscam no livro, que fornece de modo muito especial, sugestões relativas à perspectiva de transformação da vida da sociedade." ( Guido Oldrini, 21-02-2000 ).

terça-feira, 30 de abril de 2013

" Não saber a diferença entre média e mediana "


Professor da Faculdade de C. Económicas da Universidade de Sevilha.
in: Ganas de escribir 17 de Abril de 2013
 
Mais trampas do Banco Central Europeu para encobrir Merkel
 
Há alguns dias publiquei um artigo mostrando como o presidente do Banco Central Europeu havia apresentado aos líderes europeus dados sobre a evolução da produtividade e dos salários em diferentes países que estavam manipulados ou manifestavam uma tremenda falta de conhecimentos de questões económicas básicas ( Las trampas de Draghi para bajar salarios ). Qualifiquei esse facto como uma aldrabice, porque dessa forma se confundiam as pessoas para poder levar por diante propostas que não têm nenhum outro fundamento a não ser a ideologia neoliberal de quem as propõe.

Agora temos novamente que denunciar outra publicação do Banco Central Europeu cujos resultados confundem a população e são difundidos para ajudar a política reaccionária da Sra. Merkel e seu governo, determinados a justificar a sua guerra económica contra a Europa dizendo aos seus compatriotas que a negligência dos países do Sul da Europa obriga as famílias alemãs, que são as mais pobres, a pagar os seus excessos.

Diversos meios de comunicação tão influentes como The Wall Street Journal, Financial Times e o Frankfurter Allgemeine têm reproduzido nos últimos dias um trabalho publicado pelo Banco Central Europeu na revista Statistics Paper ( "The Eurosystem Household Finance and Consumption Survey, Results from the First Wave" ) em que se quantifica a riqueza das famílias dos países europeus mostrando que a das alemãs é menor do que a dos outros países da periferia europeia.

Os títulos destes artigos são significativos: "Ricos cipriotas, pobres alemães" Reiche Zyprer, arme Deutsche ), em Frankfurter Allgemeine ; "Os mais pobres da Europa? Olhe para o Norte." ( Europe's Poorest? Look North ) em The Wall Street Journal; ou " Os pobres alemães cansados de resgatar a zona euro "( Poor Germans tire of bailing out eurozone ) no Financial Times.

Mas este estudo que serve para proclamar aos quatro ventos como é injusto que sejam precisamente os alemães a pagar a dívida destes países que têm famílias mais ricas, tem truque. Como acabam de demonstrar os pesquisadores Paul De Grauwe e Juemey Ji num artigo publicado no Social Europe Journal ( Are Germans Really Poorer Than Spaniards, Italians And Greeks? ), os dados que o Banco Central Europeu apresenta neste estudo não permitem tirar semelhantes conclusões, porque se referem à mediana da riqueza das famílias estudadas e não à riqueza média.

Para aqueles que não estão habituados a estes conceitos, mostrarei a diferença com um exemplo simples.

Suponhamos que se trata de comparar a riqueza das famílias de dois países A e B e que a riqueza das cinco famílias do país A é 12, 13, 14, 15, 16 e a das famílias do país B é de 7, 8, 9, 10, 71.

A mediana é o valor da variável que tem acima e abaixo o mesmo número de observações. Assim, no país A a riqueza mediana seria 14 e no país B seria 9.

Vejamos porque é incorrecto dizer que as famílias do país A são mais ricas do que os do B, ou que o país A é mais rico que o B.

Se em lugar da mediana tomarmos a média (média das observações, ou seja, o resultado da divisão do valor total pelo número de famílias) conclui-se que a riqueza familiar média no país A é 14, enquanto nas famílias do país B é 21.

O que aconteceu é lógico: a mediana "escondeu" a grande riqueza que se acumula na quinta família do país B.

Este simples exemplo permite verificar, portanto, que o que importa não é a mediana (neste caso, da riqueza), mas sim ter em conta a diferença que há entre a mediana e a média porque essa diferença é que indica o grau de desigualdade entre as variáveis observadas.

No exemplo, vê-se claramente que o país B que aparece como mais pobre se a riqueza for medida pela mediana, é na realidade muito mais rico.

No seu comentário ao estudo do BCE, de Grauwe e Ji mostram que, se se levar em conta a desigualdade, os resultados a que se chega são outros. Assim, provam que a diferença entre a riqueza dos 20% das famílias mais ricas e os 20% das mais pobres é 149 para 1, na Alemanha, uma desigualdade entre dez e quinze vezes maior do que a registada em Espanha, Itália, Grécia ou Portugal, por exemplo.

Portanto, não se pode dizer, como se faz, que as famílias alemãs, como um todo, são mais pobres do que as dos outros países. Ao dizer isso, está-se a esconder que na Alemanha a riqueza das famílias está muito mais concentrada que nos outros países e que uma pequena parte das famílias, os muito ricos, detém a maior parte da riqueza.

Além disso, de Grauwe e Ji indicam que observar apenas a riqueza das famílias, quando se pretende tirar conclusões sobre como é injusto um país resgatar outro, também não é muito adequado. Afirmam, justamente, que se deveria levar em conta, para além da riqueza das famílias, aquela que detêm as empresas e o governo.

Acontece que na Alemanha a parcela da riqueza total que corresponde às famílias, em relação à das empresas e do sector público, é menor que em outros países europeus.

Se a riqueza for vista como um todo, e não apenas na família, por exemplo, através do stock de capital per capita, acontece que a da Alemanha é quase o dobro da que corresponde a países como Espanha, Grécia, Portugal, Irlanda e até Itália.

Em suma, mais uma vez o Banco Central Europeu engana, difundindo uma visão parcial da realidade, que é usada pelos grandes meios de comunicação para apoiar a estratégia do governo alemão, orientada para favorecer cada vez mais as suas grandes corporações e bancos.

O BCE é um instrumento dos grandes grupos empresariais e financeiros da Europa, cujo melhor representante político é o actual governo alemão, e neste momento isso é demonstrado pela ajuda na ocultação de que o que acontece na Alemanha não é que o país como um todo, ou todas as suas famílias, estejam a empobrecer por causa dos países do Sul. É outra coisa: há cada vez mais famílias alemãs a empobrecer, mas porque a riqueza se concentra em cada vez menos ricos alemães. Alemães ricos, que também o são devido à pilhagem que as suas empresas e bancos, com a inestimável ajuda do Banco Central Europeu, efectuam nos países do Sul.

Merkel e o seu governo são não só o inimigo número um da Europa como também da imensa maioria dos alemães.

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