quarta-feira, 16 de outubro de 2013

“A causa da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo”



Por: François Houtart 
in:Brasil de Fato (20/01/2012)


François Houtart é sociólogo e ex-professor da Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É diretor do Centro Tricontinental, entidade que desenvolve trabalho na Ásia, África e América Latina.
 
(extrato da entrevista de Nilton Viana ao Prof. François Houtart)
Ler entrevista completa (clique aqui) em: Brasil de Fato 20-01-2012
 
"Em entrevista ao Brasil de Fato, Houtart fala também sobre as várias facetas desta crise, inclusive a crise alimentar, a qual, segundo ele, faz parte da mesma lógica."(...) (Nilton Viana) “A combinação da crise econômica com a alimentar é algo novo. Porém, são vinculadas”.
 
(...)"A causa fundamental da crise financeira é a lógica do próprio capitalismo, que torna o capital motor da economia. E seu desenvolvimento – essencialmente, a acumulação – leva à maximização do lucro. Se a financeirização da economia favorece a taxa de lucro e se a especulação acelerou o fenômeno, a organização da economia como um todo continua dessa forma. Mas um mercado não regulamentado capitalista conduz inevitavelmente à crise. E, como indicado no relatório da Comissão das Nações Unidas, é uma crise macroeconômica."(...)

(...)"A primeira solução é a do sistema. Alguns, principalmente preocupados com a crise financeira, propuseram mudar e punir os responsáveis. Essa é a teoria do capitalismo (teoria neoclássica em economia), que vê elementos positivos na crise, porque eles permitem a liberação de elementos fracos ou corruptos para retomar o processo de acumulação em bases saudáveis. Atores são alterados, e não se muda o sistema. Evidentemente não é solução.
 
 A segunda visão é propor regulamentos. É reconhecido que o mercado regula a si mesmo e que os organismos nacionais e internacionais têm necessidade de executar essa tarefa. Os Estados e organizações internacionais devem ser envolvidos. O G8, por exemplo, propôs certos regulamentos do sistema econômico global, mas ligeiros e temporários. Em vez disso, a ONU apresentou uma série de regulamentações muito mais avançadas. Propôs a criação de um Conselho de Coordenação Econômica Global, em pé de igualdade com o Conselho de Segurança, e também um painel internacional de especialistas para acompanhar permanentemente a situação econômica global.
 
 Outras recomendações tratadas foram a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário e, também, maiores requisitos de reservas bancárias e um controle mais rígido das agências de notação de crédito. A profunda reforma das instituições de Bretton Woods foi incluída, bem como a possibilidade de se criar moedas regionais em vez de ter como referência única o dólar. Os regulamentos propostos pela Comissão Stiglitz para reconstruir o sistema financeiro e monetário, apesar de algumas referências a outros aspectos da crise, tais como clima, energia, alimentos – e apesar do uso da palavra sustentável para qualificar o crescimento – não têm a profundidade suficiente para fazer a pergunta: para que reparar o sistema econômico? Para desenvolver, como antes, um modelo que destrói a natureza e é socialmente desequilibrado?
 
É provável que as propostas para reformar o sistema monetário e financeiro serão eficazes para superar a crise financeira, e muito mais do que o que foi feito até agora, mas é suficiente para responder a desafios globais contemporâneos? A solução é dentro do capitalismo, um sistema historicamente esgotado, mesmo que tenha ainda muitos meios de adaptação. A gravidade da crise é tal que devemos pensar em alternativas, não somente em regulações."(...)
 
(...)
"Questionar o próprio modelo de desenvolvimento. A multiplicidade de crises que foram exacerbadas nos últimos tempos é resultado da lógica de mesmo fundo: uma concepção de desenvolvimento que ignora as “externalidades” (danos naturais e sociais); a ideia de um planeta inesgotável; o foco no valor de troca em detrimento do valor de uso; e a identificação da economia com a taxa de acumulação de lucro e do capital que cria, consequentemente, enormes desigualdades econômicas e sociais. Esse modelo resultou em um crescimento espetacular da riqueza global, mas seu papel histórico se perdeu, devido à sua natureza destrutiva e da desigualdade social que resultou. A racionalidade econômica do capitalismo, escreve Wim Dierckxsens, não apenas tende a negar a vida da maioria da população mundial como também destrói a vida natural.

Temos que discutir alternativas ao modelo econômico capitalista prevalecente hoje e os meios para rever o próprio paradigma (orientação básica) da vida coletiva da humanidade sobre o planeta, conforme definido pela lógica do capitalismo, que hoje é global. A vida coletiva é composta por quatro elementos que chamamos de base, porque as exigências são parte da vida de toda sociedade, desde as mais antigas até as mais contemporâneas: a relação com a natureza; a produção da base material da vida física, cultural e espiritual; a organização social e política coletiva; e a leitura do real e autoenvolvimento dos atores na sua construção da cultura. Ou seja, cada sociedade tem essa tarefa para realizar.(...)"
 
As alternativas necessariamente passam pelo envolvimento do conjunto da sociedade organizada, dos movimentos sociais.
(...) As alternativas são tão importantes que não vão chegar por si só. É somente pela pressão dos movimentos sociais, movimentos políticos também, que podemos esperar chegar a redefinir os objetivos fundamentais da presença humana no planeta e o desenvolvimento humano no planeta. E isso significa transformar a relação com a natureza. Passar da exploração ao respeito. Significa outra definição da economia.
 
 Não somente produzir um valor agregado senão produzir as bases da vida. Da vida física, cultural, espiritual de todos os seres humanos no planeta. Isso é a economia. Porém, isso não corresponde à definição do capitalismo. Também é preciso generalizar a democracia a todas as instituições, não somente políticas e econômicas mas também na relações humanas, relações entre homens e mulheres etc.
 
 É necessário também não identificar desenvolvimento com civilização ocidental e dar a possibilidade a todas as culturas, religiões, filosofias de participar dessa construção. Isso é o que chamo de construir o bem comum da humanidade, que é a vida; assegurar a vida, a vida do planeta e a vida da humanidade. Isso é um projeto alternativo, que pode parecer utópico. Porém não é utópico porque existem milhares de organizações e movimentos sociais que já trabalham para transformar esses aspectos da vida comum da humanidade, para melhorar a relação com a natureza, para ter outro tipo de economia, para ter uma participação, uma democracia que seja participativa e para renovar a cultura. Existem muitas iniciativas. Isso posso chamar de construção do socialismo. Porque socialismo não é uma palavra. É um conteúdo. E eu penso que devemos redefinir o conteúdo do socialismo."(...)

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

A Economia, o capitalismo e a guerra



 Por:Juan Torres López  em, Ganas di Escribir 06/09/2013






Juan Torres López (Granada, 1954) é um economista espanhol.
É membro do Conselho Científico da ATTAC Espanha e
Professor de Economia Aplicada da Universidade de Sevilha.
Mantém o website Ganas di Escribir e coordena o site dedicado
a informações económicas altereconomia.org
 
                                                                                                                                                                                                                                                                              "Não podemos construir um carro decente
 nem um televisor ...  já não temos siderurgia,
não podemos fornecer cuidados de saúde aos nossos idosos,
mas, isso sim, podemos bombardear o teu país até o fazer em merda, 
especialmente se o teu país está cheio de morenos...". George Carlin
 
 

Muita gente identifica o capitalismo com a existência dos mercados e até mesmo das empresas, mas isso é um grave erro. Ambos existiram muito antes do capitalismo e continuarão a existir quando ele desaparecer, embora seja verdade que em cada sistema económico funcionam com características e funções diversas.

A característica distintiva do capitalismo é que, primeiro, incorporou na esfera do mercado recursos antes utilizados fora dele, como o tempo de trabalho e a terra. Antes podia-se comprar ou vender às pessoas mas não adquirir o seu trabalho em troca de um salário e a terra conquistava-se ou transmitia-se, mas não se intercambiava em mercados como se faz no capitalismo. Esse facto, e o de que mais tarde foram mercantilizadas até mesmo as expressões mais íntimas da vida humana e social, fazem com que o capitalismo se distinga não por haver criado, como às vezes se acredita equivocadamente, a economia de mercado, mas a sociedade de mercado. E, portanto, submeter toda a vida social no seu conjunto à ânsia do lucro.

A utilização do trabalho assalariado e de grandes volumes de capital (físico e em dinheiro) no seio das empresas permite multiplicar a capacidade de produção e gerar uma grande acumulação que resultou, é justo dizê-lo, num progresso inegável. Mas, ao mesmo tempo, cria contradições fortes e problemas sociais muito graves.

Embora possa parecer um simples jogo de palavras, o que acontece no capitalismo é que para poder obter lucros há que obter cada vez mais lucros, o que obriga a produzir continuamente e a fazê-lo com cada vez menos custo. Basta que não cresça o investimento, mesmo que não caia, não só estagnam os rendimentos e os lucros como também se reduzem multiplicadamente.

Mas, para obter cada vez mais lucros produzindo sem parar, é preciso reduzir ao máximo o custo salarial. Isso muitas vezes provoca a falta de sintonia entre o preço que se queria pagar pelo trabalho e a possibilidade de vender tudo o que se põe á venda. Se os capitalistas fossem tão numerosos que pudessem comprar tudo o que produzem seria possível pagar aos trabalhadores uma ninharia, mas se estes são os que compram a maior parte da produção, como na realidade ocorre, acontece que, à medida que se lhes paga menos menor é a capacidade global da economia para comprar a produção. Isso significa que, queiram ou não, quando os capitalistas poupam nos salários algum pode ganhar mais, individualmente, mas, em geral, o que provocam é que se esgote a capacidade geral de absorver a produção que geram entre todos. E daí vem a maioria das crises que, de forma recorrente, vêm ocorrendo desde que o capitalismo existe.

Para evitar isso os capitalistas têm de recorrer a vários remédios (que não vou comentar aqui) e um deles é conseguir que a sua produção seja adquirida por quem não depende do salário para comprar, principalmente o sector público. É mais um paradoxo do capitalismo: os capitalistas rejeitam a actividade estatal mas apenas quando favorece outros, porque constantemente reivindicam ao sector público que adquira o máximo da sua produção ou que salve as empresas quando a sua estratégia de poupar salário produz uma crise.

Uma dessas vias é o gasto militar. Praticamente todas as grandes empresas mundiais, sem excepção, têm uma boa parte de seus negócios dedicada a fornecimento de bens ou serviços ao Estado e, mais especificamente, às suas forças armadas. É uma forma muito rentável e não dependente de salários para realizar a sua produção. E não importa que a produção militar, por vezes, se vá simplesmente armazenando ou que destrua recursos quando se utiliza, porque sob o capitalismo a produção não é levada a cabo em função de ser mais ou menos útil, mas que proporcione lucros.

É por isso que se estimula o crescimento contínuo dos gastos militares, ainda que já seja tão alto (1,33 milhões de milhões de euros em 2012) que até seja claramente desnecessário, pois muitíssimo menos que isso seria suficiente para destruir várias vezes todo o planeta. Uma despesa tão alta, irracional e desproporcionada (ou melhor, um negócio tão sumarento) só pode ser justificada se se generaliza a ideia e se convence a população de que vivemos em constante perigo e que há inúmeros inimigos prontos a nos atacar, quando na verdade o que se passa não é outra coisa que o desejo incontrolável de ganhar mais e mais dinheiro por parte das grandes empresas multinacionais.

Todos sabemos que a grande maioria dos conflitos bélicos que se verificaram na história da humanidade deveram-se a razões económicas e também agora é o caso. As últimas guerras no Iraque ou no Afeganistão, ou aquelas em menor escala que se desenvolvem em outras partes do mundo, têm a sua origem, cada vez menos dissimulada, em interesses económicos. Mas, além disso, o que acontece no capitalismo é que a guerra e os gastos militares não servem apenas os interesses económicos e na verdade converteram-se num interesse económico em si mesmo.

No capitalismo, a guerra não é apenas uma maneira de produzir satisfação e dar poder a quem a vence, como sempre, mas também se recorre a ela para resolver os problemas produzidos pela ânsia de lucro que lhe é inerente e as contradições derivadas da tentativa contínua para reduzir salários.

A conclusão é óbvia. Ainda que para se saber o que está por trás e o porquê das guerras sempre tenha sido preciso descobrir os nomes daqueles que dela se beneficiam, hoje em dia é também necessário entender como funciona uma economia que só visa o lucro privado de uma parte da sociedade à custa dos rendimentos dos demais. E a previsão subsequente é igualmente óbvia: enquanto isto ocorrer, enquanto o capitalismo sobreviver e a estratégia económica dominante seja poupar nos salários, não vão deixar de rufar os tambores da guerra nem se acabarão de contar os mortos que produz.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Capitalismo contemporâneo, imperialismo e agressividade (II)


Por: Edmilson Costa
In: Resistir info 6/09/2013
Doutorado em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor de Imperialismo (Global Editora, 1987), A política salarial no Brasil (Boitempo Editorial, 1987), Um projeto para o Brasil (Tecno-Científica, 1988), A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular, 2009) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (no prelo), além de ter ensaios publicados no Brasil e exterior.

Imperialismo, crise e guerra Essa conjuntura em que as finanças hegemonizaram a dinâmica da nova fase do imperialismo criou uma enorme desproporção entre o setor real da economia, aquele que produz e gera valor, e a órbita financeira, que não cria riqueza nova. Para se ter uma idéia, antes da crise sistêmica global que emergiu com a queda do Lehmann Brothers, o volume de recursos que circulava na órbita financeira era mais de 10 vezes maior que a produção mundial, fato que por si só já prenunciava uma crise de grandes proporções, uma vez que uma situação dessa ordem não poderia se sustentar por muito tempo, afinal a produção do mais-valor era deveras insuficiente para remunerar os lucros do setor financeiro.

Ao mesmo tempo em que avançava sobre os arcabouços do Estado do Bem Estar Social, o patrimônio público e os direitos e garantias dos trabalhadores, o imperialismo incrementava sua política agressiva, buscando combinar aceleradamente uma recuperação das taxas de lucro na área produtiva, a apropriação da renda mundial pelas finanças e o fortalecimento do complexo industrial militar, conjuntura que foi facilitada pelo colapso da União Soviética.

Assim, Reagan invadiu Granada, o Panamá, onde depôs e prendeu o presidente local e insuflou guerras regionais como na Nicarágua. A política guerreira continuou nas outras administrações, independentemente se democratas ou republicanas, uma vez que o desenvolvimento do complexo industrial militar é condição imprescindível para a manutenção do imperialismo. A escalada guerreira continuou com a invasão ao Iraque, sob o pretexto de que Saddan Hussein possuía armas de destruição em massa, o que depois se verificou que era uma falsidade. Na verdade, o que os Estados Unidos objetivavam era se apossar das imensas jazidas de petróleo daquele país.

Vale ressaltar que o imperialismo está tão dependente da indústria armamentista que, sem a produção de armas, não só o complexo industrial militar iria à falência, mas o próprio sistema imperialista entraria em colapso, uma vez que parcela expressiva de sua indústria está ligada à cadeia de produção das armas. Isso demonstra também o nível de degeneração a que chegou o imperialismo contemporâneo: só consegue continuar respirando se mantiver e desenvolver a indústria da morte.

Mas o acontecimento que proporcionou as condições objetivas para um salto de qualidade na agressividade imperialista dos Estados Unidos foi o ataque às torres gêmeas. Este atentado foi o mote que o governo Bush encontrou para institucionalizar e desenvolver novas facetas de sua política guerreira, agora sob o pretexto de combate ao terrorismo. Na verdade, com a chamada política antiterrorista o imperialismo militarizou a política e impôs ao mundo uma agenda de luta antiterrorista que se desdobrou não apenas na invasão ao Afeganistão, mas também na violação ao direito internacional, à soberania dos países, a construção de exércitos privados para realizar o trabalho sujo nas guerras contra povos e organizações contrárias à política norte-americana no mundo.

O mundo tomou conhecimento estarrecido das torturas nas prisões de Abu Ghriab e de Guantánamo, dos seqüestros e assassinatos de líderes contrários à política norte-americana e das prisões clandestinas ao redor do mundo. Ao contrário do que se poderia imaginar, o governo norte-americano justificava essas ações como parte da luta anti-terrorista, necessário para a proteção de seus cidadãos. O então vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, afirmou sem cerimônia em entrevista aos meios de comunicação que os métodos utilizados para obter informações (as mais bárbaras torturas) livraram o povo norte-americano de vários atentados.

O ensandecimento chegou a tal ponto que o secretário de Justiça dos Estados Unidos não só justificou abertamente a tortura como buscou fórmulas para legalizá-la. Todas essas ações eram de conhecimento do ex-presidente Bush, que inclusive assinava resoluções secretas para que os agentes pegos em flagrante não fossem punidos judicialmente. Por essas medidas se pode avaliar o nível de degeneração moral a que chegou o imperialismo: não se tratava de ações isoladas de funcionários estressados no teatro de operações, mas de ordens da própria cúpula imperialista que nesta fase do capitalismo perdeu qualquer referência em relação à humanidade.

Quem imaginava que o imperialismo iria reduzir sua máquina militar com a queda da União Soviética se enganou. O imperialismo está muito mais agressivo atualmente que no passado e possui hoje a mais poderosa e sofisticada máquina militar que o planeta já teve conhecimento. Porta-aviões gigantescos, submarinos atômicos, aviões invisíveis, bombas guiadas a laser, superbombardeiros, frota de aviões não tripulados (drones), helicópteros sofisticados, tanques de última geração, além de mais de 500 bases militares espalhadas pelo mundo e um aparato de espionagem maior do que as pessoas que vivem hoje em Washington. Tudo isso para sustentar a política do grande capital.

No entanto, a crise sistêmica mundial veio adicionar mais um ingrediente fundamental para a política agressiva do imperialismo. Desesperado diante da dramática situação econômica, da recessão, do desemprego crônico e dos protestos que estão ocorrendo pelo mundo contra a os ajustes determinados pelo capital, o governo norte-americano vem realizando provocações contínuas contra o Irã, a Coréia do Norte e, recentemente, conseguiu envolver vários países da União Européia em sua aventura militar na Líbia, onde destruíram fisicamente o País, mataram seus principais dirigentes e agora começam a se apossar das imensas jazidas de petróleo locais, sob o olhar complacente dos títeres que colocaram no poder.

Agora os Estados Unidos se voltam para Síria. O cenário foi montado para que a história se repetisse, mas a resistência do exército sírio, que desalojou os mercenários de várias regiões do País, derrotou essa primeira ofensiva imperialista. Derrotado o campo de batalha, os Estados Unidos tentaram legalizr a invasão, mas a Rússia e a China vetaram uma resolução do Conselho de Segurança da ONU que abria espaço para a intervenção no País. Agora, estamos na iminência de uma invasão da Síria, sob o pretexto bizarro de que o governo teria lançado armas químicas contra a população, quanto se sabe que este episódio foi montado pela CIA para justificar a agressão. Desesperado, sem apoio internacional que esperava, o imperialismo pode realizar a intervenção a qualquer momento, mas as consequências podem ser dramáticas, tanto para o povo sírio, quanto para o Oriente Médio e para o próprio imperialismo, inclusive com o aprofundamento da crise sistêmica global no interior dos Estados Unidos.

Como a política guerreira já é uma necessidade do imperialismo para desenvolver suas forças produtivas, nas épocas de crises profundas como a que estamos presenciando agora, a fúria belicista do imperialismo se torna ainda maior. Por isso, pode-se esperar tudo nesta conjuntura, pois o imperialismo está ferido e vai querer sair da crise de qualquer forma, nem que para isso coloque em xeque a existência da própria espécie humana. Para a humanidade, resta uma saída que vai significar sua própria sobrevivência: derrotar o imperialismo, superar o capitalismo e construir uma outra sociabilidade sobre os escombros desta velha ordem.
Bibliografia consultada Bukharine, N. O imperialismo e a economia mundial. Coimbra: Centelha, 1976.
Costa, E. A globalização e o capitalismo contemporâneo. (São Paulo: Expressão Popular, 2009)
--------------- Imperialismo. São Paulo: Global Editora, 1986.
Lênin, V. Imperialismo fase superior do capitalismo. Lisboa: Avante, 1976.
Luxemburg, R. A acumulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Hilferding, R. O capital Financeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1985
Hobson, J. A. A evolução do capitalismo. São Paulo: abril cultural, 1985
Para uma melhor compreensão dos clássicos do imperialismo, consultar: Hobson, A Evolução do capitalismo (Nova Cultural, 1983); Hilferding, O capital financeiro (Nova Cultural, 1938); Lênin, Imperialismo, fase superior do Capitalismo (Avante, 1984); Rosa de Luxemburg, A acumulação do Capital (Nova Cultural, 1983);e Bukharin, O imperialismo e a economia mundial (Centelha, 1976). Para uma versão mais popular, consultar Edmilson Costa, Imperialismo (Global, 1989).

domingo, 8 de setembro de 2013

Capitalismo contemporâneo, imperialismo e agressividade ( I )

Por: Edmilson Costa
 
In: Resistir info 6/09/2013
Doutorado em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da mesma instituição. É autor de Imperialismo (Global Editora, 1987), A política salarial no Brasil (Boitempo Editorial, 1987), Um projeto para o Brasil (Tecno-Científica, 1988), A globalização e o capitalismo contemporâneo (Expressão Popular, 2009) e A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil (no prelo), além de ter ensaios publicados no Brasil e exterior.
 
 
 
O imperialismo é um fenômeno identificado pelos clássicos desde a segunda metade do século XIX e significou a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista e a emergência de uma nova classe social, a oligarquia financeira. Nessa nova fase do capitalismo, onde os trustes e cartéis passaram a dominar as economias de cada País e, posteriormente, a economia mundial, um conjunto de fenômenos novos vêem marcar esta fase do desenvolvimento deste modo de produção, especialmente a partilha econômica e territorial do mundo entre os principais centros imperialistas, quando as potencias capitalistas ocuparam e passaram a colonizar parte considerável da África, Ásia e América Latina.

Esse movimento do capital monopolista tinha como objetivo transformar essas regiões em retaguarda especial do imperialismo, fonte de matérias-primas, mercados para a venda de mercadorias, esferas de aplicação do capital, fonte de rendimentos monetários, espaços militares estratégicos e reserva de mão de obra para as metrópoles. Com essa estratégia, as regiões colonizadas se transformaram em pilares fundamentais para o desenvolvimento da produção capitalista.

Com o domínio econômico e político do mundo, tornou-se mais fácil ao grande capital monopolista hegemonizar o aparelho de Estado, que passou a realizar sua política levando em conta fundamentalmente os interesses dessa nova classe social. Em outras palavras, o Estado relevou a um segundo plano os interesses gerais do capital para se transformar em instrumento da oligarquia financeira e de seus monopólios.

Mas o desenvolvimento do capitalismo e a consolidação dos monopólios não eliminou a concorrência, apenas a colocou em novo patamar. Os monopólios continuaram a travar uma dura luta pela partilha das esferas de influência. Essa luta por mercados e controle das fontes de matérias primas se tornou a causa principal causa das guerras, pois os monopólios pressionavam seus respectivos governos para aventuras militares visando uma nova correlação de força na partilha econômica do mundo. A primeira e a segunda guerra mundial foram em grande parte fruto da ganância do capital monopolista.

Após a segunda guerra mundial e, especialmente a partir dos anos 60, com a descolonização, o capital monopolista passou por transformações extraordinárias, pois a própria necessidade de expansão o impulsionou a uma nova relação entre centro e periferia. A partir de então, as corporações transnacionais, mediante a implantação de filiais produtivas na periferia, começaram a extrair generalizadamente o valor fora de suas fronteiras nacionais, ou seja, passaram a produzir fisicamente nas regiões até então produtoras de matérias primas, enquanto o sistema bancário também se internacionalizava.

Esse fenômeno da mundialização da economia, conhecido como globalização, transformou o capitalismo num sistema mundial completo, constituindo-se assim uma nova fase do imperialismo, pois agora o capital monopolista tornaria o planeta numa esfera única de produção, financiamento e realização das mercadorias, e a própria oligarquia financeira passaria a explorar diretamente os trabalhadores do centro e da periferia. Com a apropriação do valor fora das fronteiras nacionais a burguesia imperialista tornou-se uma classe exploradora direta do proletariado mundial.

"Até o período anterior à globalização, o capitalismo era completo apenas em relação a duas variáveis da órbita da circulação – o comércio mundial e a exportação de capitais. Mas, ao expandir a globalização para as esferas produtiva e financeira, bem como para outros setores da vida social, o sistema unificou globalmente o ciclo do capital, fechando assim um processo iniciado com a revolução inglesa de 1640" (Costa, 2002).

Esta nova fase do imperialismo viria a ganhar contornos mais definitivos com a ascensão dos governos Reagan e Tatcher, respectivamente nos Estados Unidos e Inglaterra. Aproveitando-se da crise do keynesianismo, desenvolveram uma ofensiva mundial no sentido de impor ao mundo a agenda neoliberal, que rapidamente se transformou em política oficial nos países centrais e, posteriormente, se espalhou para os outros países capitalistas.

A nova agenda invertia os fundamentos típicos da regulação keynesiana e em seu lugar colocava na ordem do dia o mercado como instrumento regulador das novas relações econômicas e sociais, a desregulamentação da economia, as privatizações das empresas estatais, liberalização dos mercados e dos fluxos de capitais, cortes nos gastos públicos e nos fundos previdenciários, além de uma ofensiva contra direitos e garantias dos trabalhadores.

Essas novas diretrizes produziram enorme impacto na dinâmica do capitalismo: o setor mais parasitário do imperialismo passou a hegemonizar as relações econômicas e políticas no interior dos governos neoliberais e impor ao mundo o primado das finanças globalizadas, estimuladas pela liberalização financeira e irrestrita mobilidade dos capitais. A partir daí este setor da oligarquia financeira subordinou todas as outras frações do capital e impôs a lógica das finanças não só para os negócios financeiros, mas também para as empresas produtivas e para o Estado, cujas receitas orçamentárias foram capturadas em grande parte por essa fração do capital.

Ancorados pelas tecnologias da informação cada vez mais desenvolvidas, pela generalização dos computadores e da internet, o pólo financeiro do capital imperialista transformou o mundo num imenso cassino especulativo, no qual os novos produtos financeiros foram sendo criados numa velocidade proporcional à criatividade do sistema liberalizado, num frenesi especulativo que se retroalimentava como numa dança de doidivanas.

Nessa nova lógica, a captura da renda mundial deveria encilhar todos os setores da economia, que agora passariam a operar a partir da lógica das finanças. Assim, as empresas consolidaram a reestruturação produtiva, com produção sem gordura, círculos de controle de qualidade, qualidade total, restrição à atividade sindical, tudo isso para ampliar as taxas de lucro e aumentar a distribuição de dividendos para os acionistas, ávidos por lucros semelhantes aos da órbita financeira.

Os Estados também caíram na malha da apropriação financeira, em função do endividamento realizado a taxas de juros elevadas. Dessa forma, foram obrigados a comprometer parcelas cada vez maiores dos orçamentos para pagar os serviços da dívida. Como esses serviços exigiam cada vez mais recursos, os Estados cortaram os gastos públicos, salários de funcionários e verbas sociais para atender o apetite voz do pólo financeiro do imperialismo. (,,,)
Continuação deste texto em 10/09/2013
 
 
 
 
Bibliografia consultada Bukharine, N. O imperialismo e a economia mundial. Coimbra: Centelha, 1976.
Costa, E. A globalização e o capitalismo contemporâneo. (São Paulo: Expressão Popular, 2009)
--------------- Imperialismo. São Paulo: Global Editora, 1986.
Lênin, V. Imperialismo fase superior do capitalismo. Lisboa: Avante, 1976.
Luxemburg, R. A acumulação do capital. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
Hilferding, R. O capital Financeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1985
Hobson, J. A. A evolução do capitalismo. São Paulo: abril cultural, 1985
Para uma melhor compreensão dos clássicos do imperialismo, consultar: Hobson, A Evolução do capitalismo (Nova Cultural, 1983); Hilferding, O capital financeiro (Nova Cultural, 1938); Lênin, Imperialismo, fase superior do Capitalismo (Avante, 1984); Rosa de Luxemburg, A acumulação do Capital (Nova Cultural, 1983);e Bukharin, O imperialismo e a economia mundial (Centelha, 1976). Para uma versão mais popular, consultar Edmilson Costa, Imperialismo (Global, 1989).

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Mundo dos Homens - Trabalho e Ser Social

Sugestão de leitura:

Autor: Sérgio Lessa
ISBN: 978-85-65999-01-4
Edição: 3ª – revista e corrigida
Páginas: 254



" É um verdadeiro prazer para um estudioso europeu se deparar com um livro como este de Sergio Lessa. Na Europa, após 1989, os estudos que se referem ao socialismo estão sob uma forte contração. É necessário voltar-se à América Latina, notadamente ao Brasil, para encontrar ainda intacto, talvez fortalecido, o zelo dos estudos e pesquisas de há um tempo, zelo do qual o livro de Lessa está entre os exemplos mais felizes. Bom conhecedor e divulgador da última grande obra teórica de Lukács, Para uma ontologia do ser social, Lessa tem a capacidade e a inteligência de ligar o estudo da teoria às suas repercussões sobre a prática, sobre os problemas da vida dos homens, sobre a sociedade em geral. A Ontologia de Lukács aponta no trabalho o modelo de toda prática social; Lessa tira disto inspiração para argumentar com perícia acerca de todo o complexo problemático (valoração, alienação, liberdade, etc.) que socialmente procede deste modelo. Deste modo seu livro vai ao encontro de variados interesses: não apenas aos interesses do público universitário e dos especialistas, mas também daqueles que buscam no livro, que fornece de modo muito especial, sugestões relativas à perspectiva de transformação da vida da sociedade." ( Guido Oldrini, 21-02-2000 ).

terça-feira, 30 de abril de 2013

" Não saber a diferença entre média e mediana "


Professor da Faculdade de C. Económicas da Universidade de Sevilha.
in: Ganas de escribir 17 de Abril de 2013
 
Mais trampas do Banco Central Europeu para encobrir Merkel
 
Há alguns dias publiquei um artigo mostrando como o presidente do Banco Central Europeu havia apresentado aos líderes europeus dados sobre a evolução da produtividade e dos salários em diferentes países que estavam manipulados ou manifestavam uma tremenda falta de conhecimentos de questões económicas básicas ( Las trampas de Draghi para bajar salarios ). Qualifiquei esse facto como uma aldrabice, porque dessa forma se confundiam as pessoas para poder levar por diante propostas que não têm nenhum outro fundamento a não ser a ideologia neoliberal de quem as propõe.

Agora temos novamente que denunciar outra publicação do Banco Central Europeu cujos resultados confundem a população e são difundidos para ajudar a política reaccionária da Sra. Merkel e seu governo, determinados a justificar a sua guerra económica contra a Europa dizendo aos seus compatriotas que a negligência dos países do Sul da Europa obriga as famílias alemãs, que são as mais pobres, a pagar os seus excessos.

Diversos meios de comunicação tão influentes como The Wall Street Journal, Financial Times e o Frankfurter Allgemeine têm reproduzido nos últimos dias um trabalho publicado pelo Banco Central Europeu na revista Statistics Paper ( "The Eurosystem Household Finance and Consumption Survey, Results from the First Wave" ) em que se quantifica a riqueza das famílias dos países europeus mostrando que a das alemãs é menor do que a dos outros países da periferia europeia.

Os títulos destes artigos são significativos: "Ricos cipriotas, pobres alemães" Reiche Zyprer, arme Deutsche ), em Frankfurter Allgemeine ; "Os mais pobres da Europa? Olhe para o Norte." ( Europe's Poorest? Look North ) em The Wall Street Journal; ou " Os pobres alemães cansados de resgatar a zona euro "( Poor Germans tire of bailing out eurozone ) no Financial Times.

Mas este estudo que serve para proclamar aos quatro ventos como é injusto que sejam precisamente os alemães a pagar a dívida destes países que têm famílias mais ricas, tem truque. Como acabam de demonstrar os pesquisadores Paul De Grauwe e Juemey Ji num artigo publicado no Social Europe Journal ( Are Germans Really Poorer Than Spaniards, Italians And Greeks? ), os dados que o Banco Central Europeu apresenta neste estudo não permitem tirar semelhantes conclusões, porque se referem à mediana da riqueza das famílias estudadas e não à riqueza média.

Para aqueles que não estão habituados a estes conceitos, mostrarei a diferença com um exemplo simples.

Suponhamos que se trata de comparar a riqueza das famílias de dois países A e B e que a riqueza das cinco famílias do país A é 12, 13, 14, 15, 16 e a das famílias do país B é de 7, 8, 9, 10, 71.

A mediana é o valor da variável que tem acima e abaixo o mesmo número de observações. Assim, no país A a riqueza mediana seria 14 e no país B seria 9.

Vejamos porque é incorrecto dizer que as famílias do país A são mais ricas do que os do B, ou que o país A é mais rico que o B.

Se em lugar da mediana tomarmos a média (média das observações, ou seja, o resultado da divisão do valor total pelo número de famílias) conclui-se que a riqueza familiar média no país A é 14, enquanto nas famílias do país B é 21.

O que aconteceu é lógico: a mediana "escondeu" a grande riqueza que se acumula na quinta família do país B.

Este simples exemplo permite verificar, portanto, que o que importa não é a mediana (neste caso, da riqueza), mas sim ter em conta a diferença que há entre a mediana e a média porque essa diferença é que indica o grau de desigualdade entre as variáveis observadas.

No exemplo, vê-se claramente que o país B que aparece como mais pobre se a riqueza for medida pela mediana, é na realidade muito mais rico.

No seu comentário ao estudo do BCE, de Grauwe e Ji mostram que, se se levar em conta a desigualdade, os resultados a que se chega são outros. Assim, provam que a diferença entre a riqueza dos 20% das famílias mais ricas e os 20% das mais pobres é 149 para 1, na Alemanha, uma desigualdade entre dez e quinze vezes maior do que a registada em Espanha, Itália, Grécia ou Portugal, por exemplo.

Portanto, não se pode dizer, como se faz, que as famílias alemãs, como um todo, são mais pobres do que as dos outros países. Ao dizer isso, está-se a esconder que na Alemanha a riqueza das famílias está muito mais concentrada que nos outros países e que uma pequena parte das famílias, os muito ricos, detém a maior parte da riqueza.

Além disso, de Grauwe e Ji indicam que observar apenas a riqueza das famílias, quando se pretende tirar conclusões sobre como é injusto um país resgatar outro, também não é muito adequado. Afirmam, justamente, que se deveria levar em conta, para além da riqueza das famílias, aquela que detêm as empresas e o governo.

Acontece que na Alemanha a parcela da riqueza total que corresponde às famílias, em relação à das empresas e do sector público, é menor que em outros países europeus.

Se a riqueza for vista como um todo, e não apenas na família, por exemplo, através do stock de capital per capita, acontece que a da Alemanha é quase o dobro da que corresponde a países como Espanha, Grécia, Portugal, Irlanda e até Itália.

Em suma, mais uma vez o Banco Central Europeu engana, difundindo uma visão parcial da realidade, que é usada pelos grandes meios de comunicação para apoiar a estratégia do governo alemão, orientada para favorecer cada vez mais as suas grandes corporações e bancos.

O BCE é um instrumento dos grandes grupos empresariais e financeiros da Europa, cujo melhor representante político é o actual governo alemão, e neste momento isso é demonstrado pela ajuda na ocultação de que o que acontece na Alemanha não é que o país como um todo, ou todas as suas famílias, estejam a empobrecer por causa dos países do Sul. É outra coisa: há cada vez mais famílias alemãs a empobrecer, mas porque a riqueza se concentra em cada vez menos ricos alemães. Alemães ricos, que também o são devido à pilhagem que as suas empresas e bancos, com a inestimável ajuda do Banco Central Europeu, efectuam nos países do Sul.

Merkel e o seu governo são não só o inimigo número um da Europa como também da imensa maioria dos alemães.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Marx e a crise: os fantasmas, agora, são eles

"Marx, hoje, volta a rondar a Europa, os EUA, a Ásia, nossa América Latina. Não somos mais um mero espectro. Somos cada vez mais de carne, osso, sangue e sonhos, enquanto eles se transformam a cada dia em fantasmas."

 Por: Mauro Luís Iasi em, pcb.org.br 14-03-2013
 
 
 
A atual crise do capitalismo mundial, além das graves consequências que traz para os trabalhadores, acabou por propiciar um efeito direto no debate teórico e acadêmico: uma retomada das ideias de Marx. Por que isso ocorre? Que tipo de previsão foi realizada por Marx que o faz tão maldito, perseguido e tão renitente em nascer e renascer cada vez que o julgam morto em definitivo?

Passamos, nós marxistas, pelas décadas de 1980 e 1990 resistindo no universo acadêmico como se fôssemos dinossauros anacrônicos, insistindo em teses que desmoronam diante das "evidências" pós-modernas, que afirmavam o fim da validade da teoria do valor, o fim da centralidade do trabalho, das classes e, por consequência, das formas organizativas e dos projetos políticos próprios da classe trabalhadora.

Karl Offe  chegou a afirmar que, depois das ideias de Touraine, Foucault e Gorz, o pensamento marxista não teria mais muita "respeitabilidade cientítico-social". O próprio Keynes, que alguns se preparam para resgatar como balsamo benígno contra os males da desregulação, sobre O Capital de Karl Marx decretou:

"Como posso aceitar uma doutrina que estabelece como bíblia, acima e além de qualquer crítica, um manual econômico obsoleto que reconheço não só como científicamente errôneo, mas também sem interesse ou aplicação para o mundo moderno?"

Logo na sequência do mesmo texto, Keynes confirmará sua postura "científica" ao declarar preferir a burguesia que "apesar de suas falhas, representa a prosperidade" e certamente leva as "sementes de todo avanço humano", criticando aqueles que "preferem a lama ao peixe" e "exaltam o proletariado rude" contra a burguesia.

Parece que a burguesia continua, em sua incansável rota em direção ao avanço humano, cometendo "algumas falhas", que ameaçam a humanidade para garantir o avanço do capital. O proletariado rude, imerso na lama na qual tem que viver, mais uma vez tenta compreender a natureza da vaga que ciclicamente o afoga e, mais uma vez, o velho Karl Marx se levanta de seu descanso no cemitério de Londres para assombrar os respeitáveis senhores da ciência.

Qual seria o elemento teórico que encontramos em O Capital que permite que Marx seja ainda tão contemporâneo? Primeiro, poderíamos dizer que Marx era, de certa forma, mais anacrônico em sua época do que agora. Como pensa o capital como um conceito, um movimento do real que dialeticamente transita através de suas formas e, sendo histórico, nasceu, se desenvolveu e um dia irá ser superado, Marx projeta, pela análise precisa do ser do capital, aquilo que denomina de modo de produção especificamente capitalista, ou seja, um mundo subsumido inteiramente ao metabolismo do capital, no qual reina a subordinação real do trabalho ao capital, no qual a mercadoria e o dinheiro são realidades universais, subordinando o valor de uso ao valor de troca.

Ao projetar o capital maduro e completo é que Marx pode avaliar o processo possível de sua superação. Um procedimento que os antigos, antes que os pós-modernos convencessem o mundo acadêmico a aderir a um novo agnosticismo, chamavam de ciência. Ora, este capital maduro estava longe de corresponder à realidade de meados do século XIX; no entanto, para desespero da respeitável intelligentsia, o capitalismo contemporâneo se parece muito mais com a previsão de Marx do que com a projeção mítica anunciada pelos arautos do liberalismo e da economia política.

Apesar de autores como Boaventura de Souza Santos afirmarem que, considerando os três gigantes clássicos do pensamento social (Marx, Durkheim e Weber), Marx teria sido entre eles o que "errou de forma mais espetacular". Mas o desfecho do mundo burguês no inicio do século XXI se caracteriza inequivocamente por uma constatação: o mito liberal morreu!

Qual é a essência do mito liberal e como Marx se contrapôs a ele? O fundamento do mito liberal pode ser resumido da seguinte maneira: o capitalismo é um sistema virtuoso, pois permite que cada um, buscando seu próprio interesse egoísta, contribua para o estabelecimento do bem comum. Dessa maneira, é o único que pode articular de maneira eficiente os valores do indivíduo, da liberdade, da propriedade e da igualdade. O capitalista busca lucro, mas para obtê-lo produz mercadorias e para tanto gera emprego. O trabalhador quer pagar suas contas e viver e por isso vende sua força de trabalho. Com seu salário compra as mercadorias oferecidas pelos capitalistas e assim se fecha o ciclo. O burguês tem seu lucro, o trabalhador seu salário e a sociedade cada vez mais mercadorias com que satisfazer suas necessidades.

O sistema capitalista seria, ainda, virtuoso não apenas pelo equilíbrio entre interesses individuais egoístas e interesse geral, mas por sua dinâmica: quanto mais o capital produz mercadorias, mais contrataria, mais salários distribuídos intensificariam o consumo, que levaria a nova produção, mais contratações e novos salários que induziriam ao aumento do consumo e assim por diante, da melhor forma possível e no melhor dos mundos.

Recentemente, o presidente Lula conjurou o mito com todas suas letras ao afirmar que diante da crise os trabalhadores em vez de pedir aumento deveriam fazer com que suas empresas produzissem mais, para aquecer o Mercado, atender as necessidades do mercado consumidor e daí garantir, não apenas empregos como a possibilidade futura de melhores salários.

Apesar da fé consagrada de muitos ao mito, Marx escreveu O Capital para comprovar a falácia deste argumento central do pensamento burguês. Podemos resumir desta forma as principais conclusões do pensador alemão para contrapor uma visão científica à ideologia liberal: a) quanto mais cresce a concorrência entre os capitalistas, menor é a livre concorrência e maior é a tendência ao monopólio; b) nas condições de uma concorrência entre monopólios, os capitalistas tendem sempre a investir mais em capital constante (máquinas, instalações, novas matérias primas, etc) para aumentar a produtividade do trabalho, do que em capital variável (a compra da força de trabalho) alterando drasticamente a composição orgânica do capital em favor do trabalho morto; c) o resultado aparentemente paradoxal desse processo é uma tendência à queda na taxa de lucro, ou seja, quanto mais o capital cresce, maior é a produtividade do trabalho pela aplicação consciente da técnica e da ciência ao processo de trabalho, quanto mais o capital se torna monopolista e mundial, menor é a taxa de lucro.

Na verdade, a tautologia liberal afirma que quanto mais o capital cresce, mais ele cresce. O que Marx anunciou pela dialética do capital, compreendido pela minuciosa análise que se nega a permanecer na superfície aparente dos fenômenos, é que quanto mais o capital cresce, mais ele produz a crise que é própria à sua natureza, ou seja, de ser valor em constante processo de valorização, ou seja, uma crise de superacumulação que se combina de forma explosiva com manifestações de superprodução, subconsumo e queda tendencial da taxa de lucro.

O fato desconcertante para os adeptos dos planos de aceleração do crescimento, ou da irracionalidade exuberante como batizou Greenspan (ex-presidente do Banco Central norte-americano), é que o que causa a crise não é a carência, mas a abundância, a pletora. Um raciocínio típico de Marx, isto é, não argumenta com o adversário teórico pela negação de sua tese, mas pela suposição de sua plena realização. No caso concreto de nossa análise, afirma que a dinâmica do capital leva à aparente confirmação do mito liberal, levando a sociedade a uma espiral irresistível de produção, consumo e reinvestimento; no entanto este reinvestimento sempre se dá, pela própria concorrência, seja livre ou monopólica, alterando a composição orgânica em favor do capital constante e, portanto, alimentando a queda tendencial da taxa de lucro.

No momento agudo deste processo, o capital realizado ao final do ciclo, e que deveria voltar ao início como novo capital inicial, encontra todo o metabolismo do capital saturado de investimentos, muitos meios de produção instalados, muitos trabalhadores empregados, muitas mercadorias produzidas, e tudo isso com taxas de lucro menores. Em momentos normais, o capital migra para outra área, seja para produzir outro tipo de mercadoria, seja para outra região em busca de elementos que possam baratear seus custos com força de trabalho, matérias primas ou outros elementos do capital constante. No entanto, nas épocas que antecedem às crises, considerando o capital total, é como se o capital não encontrasse onde aportar e começa a parar.

Como o capital é, antes de qualquer coisa, movimento do valor em constante processo de valorização, sua crise ocorre quando este movimento se paralisa em algum ponto do ciclo do capital: como dinheiro que não consegue virar crédito, como capacidade instalada e ociosa, como força de trabalho contratada e impedida de trabalhar, como mercadoria produzida e que não encontra o consumo na proporção de sua oferta, ou ainda pior, como consumo realizado que alimenta a fogueira da superacumulação.

Para que possamos entender o desfecho da crise e, principalmente, os efeitos sobre a classe trabalhadora, é necessário recorrer a um raciocínio essencial que Marx desenvolve ao tratar de sua tese sobre a queda tendencial da taxa de lucro no Livro III de O Capital: as contratendências.

Marx precisava defender sua tese em um momento no qual o mito liberal esbanjava saúde. A primeira grande crise do capital, entre os anos 1870 e 1880, ofereceu para o autor os elementos centrais de sua afirmação. No entanto, o capital estava destinado a sair dessa crise e de outras. É preciso não confundir a teoria de Marx sobre a crise com qualquer afirmação messiânica sobre uma crise final catastrófica que levaria por si mesma ao fim do capitalismo. Para o autor, o capital desenvolveria elementos contra-tendenciais que fariam da queda na taxa de lucro uma tendência e das crises uma realidade cíclica, ou seja, em outras palavras, não se trata de uma linha descendente que culmina no fim do poço, mas de um movimento de crescimento, auge, crise e retomada até novo ápice que leva a uma nova crise.

As chamadas contratendências seriam todas as ações empreendidas pelo capital no sentido de se contrapor à queda na taxa de lucro. Podemos resumi-las da seguinte maneira: a) aumento do grau de exploração da classe trabalhadora, seja pelo aumento da jornada de trabalho, seja pela intensificação do trabalho; b) redução dos salários; c) redução dos preços dos elementos do capital constante, tais como buscar matérias-primas mais baratas, máquinas mais eficientes, subsídios para insumos e serviços essenciais como aço, mineração, energia, armazenamento, transporte e outros; d) formação de uma superpopulação relativa, ou seja, reunir um contingente de força de trabalho muito além das necessidades do capital e mesmo além do exército industrial de reserva como forma de pressionar o valor da força de trabalho para baixo; e) ampliação e abertura de mercado externo como forma não apenas de desovar o excedente produzido, como de encontrar fontes de matéria prima e recursos abundantes, barateando seus custos; d) o aumento do capital em ações, isto é, buscando compensar a queda na taxa de lucro com juros oferecidos pelo mercado de papéis oferecidos por empresas ou por títulos do Estado.

Notem que todas as contratendências escondem um sujeito oculto. Trata-se, já no final de O Capital, de mais um embate, este decisivo, contra a ideologia liberal. Quem administra os limites da exploração do trabalho, seja pelo tamanho da jornada, seja pelas condições gerais da contratação? Quem determina os limites legais da compra da força de trabalho e seu valor? Quem pode baratear os elementos do capital constante por meio de subsídios, créditos facilitados, isenções e outros meios conhecidos? Quem assume o custo de administração, manutenção e controle sobre uma superpopulação relativa cujo papel é nunca entrar no mercado e trabalho? Quem representa os interesses das corporações monopólicas na ampliação, conquista e manutenção de mercados em disputa com outros monopólios? Finalmente, quem se presta ao papel de oferecer títulos que remuneram com taxas de juros generosas sem se preocupar em perder dinheiro ou comprar de volta títulos podres e sem valor?

Esse sujeito, que mal se oculta, só pode ser o Estado! Eis que se desmorona a mãe de todos os mitos liberais: o Estado não deve intervir na livre concorrência entre os indivíduos pela disputa de riquezas e propriedades, resumido na tese da não intervenção estatal na economia. Para Marx, o Estado sempre foi um fator determinante no sociometabolismo do capital, em seu nascimento na acumulação primitiva de capitais, na garantia das condições gerais chamadas de extraeconômicas (garantia da propriedade, subordinação legal e institucional da força de trabalho ao capital, defesa da ordem, etc.) no período de ouro do liberalismo, na representação dos monopólios na partilha e repartilha do mundo, fazendo dos interesses das corporações o interesse nacional; e, por fim e mais importante, nos momentos de crise em que o custo da exuberância irracional, que levou à apropriação indecente da riqueza socialmente produzida na forma de acumulação privada, tem que ser socializado por toda a Nação.

Além do evidente papel do Estado no comando e gerenciamento das contratendências, fica evidente o caráter de classe destes mecanismos, o que nos ajuda a entender os efeitos que recairão sobre os trabalhadores. A intensificação da exploração, que leva ao aumento do desgaste da força de trabalho e à intensificação dos acidentes e das doenças profissionais; a redução de salários, assim como a precarização das condições de contratação, com relativização e perda de direitos; o aumento da superpopulação relativa, que tem por base a intensificação da expropriação dos camponeses e de todos que ainda conseguem manter seus meios diretos de trabalho, e que leva à explosão urbana com todas suas consequências conhecidas no campo da habitação, dos serviços essenciais como educação e saúde, mas também no que se refere a questão da violência e da criminalidade.

Mesmo as ações que aparentemente não se relacionam diretamente com o agravamento das condições de exploração e a precarização das condições de vida dos trabalhadores acabam por ter efeitos muito sérios sobre a vida de quem trabalha. Os subsídios e isenções ao capital, para baratear os elementos do capital constante ou ajudá-los a manter seus patamares de venda, só podem sair do fundo comum do Estado e, portanto, à custa de cortes dramáticos em serviços públicos duramente conquistados. Só em uma semana, o governo brasileiro gastou R$50 mil milhões para manter o valor do dólar, enquanto durante todo o ano anterior foram gastos um pouco mais de R$ 20 mil milhões com a saúde, apenas para ficar em um exemplo. As fortunas gastas para manter bancos em funcionamento só podem sair do recurso público numa clara expressão de privatizar a pequena parte da produção social da riqueza que ficou no espaço publico, sem que em nenhum momento se questione o volume da riqueza que no ciclo de crescimento permaneceu na esfera da acumulação privada.

Talvez o mais grave quanto aos efeitos da ação do Estado na gestão das contratendências para os trabalhadores e a própria humanidade seja um aspecto para o qual Marx não deu maior atenção: a expansão do mercado externo. Quando Marx escrevia o último livro de O Capital, a ordem monopolista mal fazia sua estreia histórica. Para o autor, tratava-se apenas de encontrar mercados para os produtos e encontrar fontes de matérias-primas. Ocorre que, com o pleno desenvolvimento dos monopólios, passa a ser decisivo, como estudou mais tarde Lenin, a exportação de capitais, e daí a necessidade de controle das áreas de influência, levando a constante partilha e repartilha do globo, primeiro entre os monopólios e depois entre as nações que os representam, levando à Guerra.

A fase imperialista e a prática da guerra, que lhe é inseparável, fizeram desta contratendência quase que a síntese da ação do Estado em defesa do capital e da manutenção de suas taxas de lucro contra a tendências das mesmas em cair. Não apenas pela enorme destruição material que a Guerra causa, abrindo campo para novas inversões em condições de lucratividade retomada em patamares aceitáveis para o capital, como pelo próprio estabelecimento de um complexo industrial-militar que vende ao Estado mercadorias que terão que ser substituídas quer sejam ou não usadas (como no caso do arsenal nuclear), como teorizou de forma precisa Mészáros.

Podemos resumir, afirmando que, na dinâmica das contratendências, as vítimas são os trabalhadores, os beneficiários a burguesia monopolista e o instrumento o Estado, não apenas como aparato técnico jurídico-adiministrativo, mas também e principalmente pela capacidade que lhe é própria de apresentar como universal um interesse que é particular. Nesse campo, o da luta política, a crise é o momento de retirar da gaveta do arsenal da política burguesa a tese do pacto social.

No momento da crise se reapresentam todas as alternativas em disputa. Podemos resumi-las em três posições: a) a afirmação de que tudo não passa de um incidente, mais ou menos grave, mas de qualquer forma um incidente que não compromete a estrutura do mito, ou seja, basta voltar a crescer que os empregos voltam, o consumo cresce, e tudo volta ao círculo virtuoso do capital; b) a retomada da crítica keynesiana, que aparece simultaneamente como afirmação da ordem do capital com todos os elementos que lhe são próprios (inclusive a livre concorrência), mas que afirmará a necessidade de retomar mecanismos de regulação, ou seja, não se trata de evitar a livre concorrência, mas de regular certos aspectos para que suas consequências inevitáveis não gerem condições catastróficas que possam levar ao questionamento do sistema; c) a alternativa socialista, ou seja, aquela que se fundamenta na afirmação sobre a necessidade da produção social da riqueza ser gerida também de forma social, levando à acumulação social da riqueza ser concebida como valor de uso e não mercadoria.

No presente quadro, a primeira, um pouco na defensiva e sem a arrogância que caracterizou o último ciclo, não desaparecerá. Ela se inscreverá na afirmação que basta o Estado dar os elementos para que o capital volte a crescer, sem que interfira na disputa econômica direta, por exemplo, através das estatizações. A segunda, de corte keynesiana, será a mais ativa e, portanto, mais enganosa e perigosa para os trabalhadores. Sob o manto de uma necessidade comprovada de maior regulação, que deverá se inscrever nos limites do mundo financeiro, pode chegar até a defender, como aliás já está acontecendo, algumas ações estatizantes. No entanto, esta opção mal esconde uma enorme luta política que marcou o século XX. Foi preciso ceder a determinadas demandas dos trabalhadores, por direitos e condições de vida, frente à ameaça de superação revolucionária da ordem, representada pelo advento da revolução Russa de 1917.

A solução keynesiana, que não se revestiu no século XX necessariamente com a forma de um Welfare State social democrata de perfil europeu, nos EUA prevaleceu com o New Deal, mantendo a base de uma economia de mercado fundada na livre concorrência, e na América Latina, por exemplo, a regulação estatal se deu na forma de ditaduras militares mais preocupadas com o Estado do que com o bem-estar. No quadro conjuntural atual, de inflexão política, de desmonte e isolamento das tímidas alternativas de transição socialista iniciadas no século XX, os regulacionistas tendem a se comportar mais como liberais contidos e responsáveis do que como social democratas.

Aos trabalhadores cabe uma outra ordem de tarefas. Primeiro: resistir, não aceitando que o ônus da crise recai sobre o setor que mais se penalizou no ciclo de crescimento. Não apenas lutando para que nenhum direito lhe seja retirado, como se recusando a proposta do tipo redução de jornada com redução de salário ou qualquer precarização de suas já precárias condições de contrato e de trabalho. Segundo: forçar o Estado para que se recuse a usar o recurso público para dirimir perdas ou incentivar produtividade de um setor da economia monopolizada, que lucrou fortunas e as acumulou privadamente. Enquanto o governo se regojiza com a informação de que os 20% mais pobres passaram de U$1,00 por dia para U$2,00 de maneira que saíram de uma posição que os colocava abaixo da linha da miséria para uma condição de dignidade duvidosa na linha da miséria, as 500 maiores empresas do Brasil, entre 2002 e 2007 viram seus lucros saltarem de R$ 2,9 mil milhões para R$43 mil milhões.

Em terceiro lugar, está na hora de a classe trabalhadora deixar de optar entre qual é a ortodoxia burguesa que mais lhe convém, se a liberal ou a keynesiana, e dizer a pleno pulmões que as previsões liberais ou regulacionistas, que prometiam que o crescimento econômico levaria a uma paulatina diminuição das desigualdades sociais e a um mundo justo e equilibrado, naufragaram triunfalmente. Depois os marxistas é que são acusados de "determinismo econômico"! O que é a tese de que os problemas sociais só se resolverão com o crescimento econômico de tipo capitalista senão a mais mecânica afirmação economicista?

O Brasil tinha como modelo os EUA e a Europa. Queríamos, na expressão de Galeano, ser como eles. Pois bem, já somos. Somos parte integrante do sistema capitalista mundial, no papel que nos cabe, como área de saque do imperialismo. Uma área especial que, devido ao grau de investimento imperialista dos grandes monopólios, constituímos como uma formação social com um capitalismo moderno e completo que inclusive ensaia seus primeiros movimentos no sentido do imperialismo tupiniquim, como tem teorizado Virgínia Fontes, sem, contudo, nunca sair de baixo das asas dos centros hegemônicos do imperialismo mundial.

Devemos recusar o papel miserável de entrar no debate que busca "como sair da crise". Devemos pautar o debate, o único que interessa aos trabalhadores, sobre qual forma de sociabilidade atende os interesses reais dos trabalhadores e da humanidade e pode, de quebra, evitar que ciclicamente todo o esforço produtivo seja destruído por uma nova crise que, para salvar o capital e suas taxas de lucro, destrói produtos, fábricas e seres humanos em uma escala genocida. Para nós, marxistas, existe essa alternativa: é necessário e urgente que a produção social da vida liberte-se das relações sociais de produção de tipo capitalista, superando a propriedade privada dos meios de produção e desenvolvendo as forças produtivas materiais como recursos coletivos e patrimônio da humanidade, e não propriedade dos monopólios burgueses, de maneira que possamos caminhar para a superação da forma mercadoria e afirmar a centralidade do valor de uso.

Nossa meta socialista pode ser compreendida por aqueles que nos interessam que a compreendam? Em grande parte esta é a arte da política, como disse Bourdieu: a política é a arte de "fazer crer que se pode fazer o que se diz". Nós acreditamos que sim e que podemos expressar os fundamentos de nossa proposta através de três afirmações muito simples: 1) ninguém pode se apropriar de recursos necessários à produção das condições que garantem a existência coletiva da humanidade; 2) ninguém pode se apropriar em caráter privado da força de trabalho humana, pois ela é a principal força de produção e o principal recurso comum da espécie para garantir sua existência, não podendo assumir a forma de uma mercadoria; e 3) a riqueza coletivamente produzida não pode ser acumulada privadamente.

Como dizia Brecht, "uma coisa muito simples, dificílima de ser feita". No entanto, nesse ponto a crise nos ajuda, Nunca ficou tão didático o caráter destrutivo da atual forma do capitalismo monopolista e imperialista, nunca ficou tão evidente a falácia do mito liberal, nunca foi tão urgente dotar a humanidade de uma alternativa para além da ordem do capital.

Os liberais, velhos, neos e recentes; os pós-modernos, pós-industriais, pós-socialistas; todos timidamente voltam ao "refugo das livrarias vermelhas", ao qual Keynes havia condenado a leitura marxista como nada tendo de aplicabilidade prática para os tempos modernos, para discretamente voltar a ler Marx e entender o que se passou e o que seus ideólogos não conseguem lhes explicar. Marx, hoje, volta a rondar a Europa, os EUA, a Ásia, nossa América Latina. Não somos mais um mero espectro. Somos cada vez mais de carne, osso, sangue e sonhos, enquanto eles se transformam a cada dia em fantasmas.


Notas

1 Apresentado inicialmente no Seminário sobre a Crise Econômica Mundial, promovido pelo PCB São Paulo em novembro de 2008 e modificado para a publicação.

2 Offe, Claus. Capitalismo desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 195.

3 Keynes, John Maynard. A short view of Rússia [1925]. Apud Meszáros, Istvan. Para além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 16.

4 "Max Weber e Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx nas suas previsões". (Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999, p. 34.) Do mesmo autor podemos citar a seguinte passagem: "Se o marxismo é uma ciência tem que se submeter à prova dos fatos e os fatos não vão no sentido previsto por Marx" (idem p. 25)

5 Para uma análise crítica sobre a tese da crise final, ver O encontro da revolução com a História, de Valério Arcary (São Paulo: Xamã/ Institute Rosa Sundermann, 2006)

6 Ver o capítulo XIV, do livro III, volume 4 de O Capital de Karl Marx.

7 Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 1998, p. 185.



 Sobre o autor, Mauro Luís Iasi -Professor adjunto da ESS da UFRJ. Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1999) e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2004). Participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM- ESS - UFRJ). Educador popular do NEP 13 de Maio. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociologica, Sociologia Política e Sociologia do Trabalho. Concentra sua atenção atualmente nos seguintes temas: ideologia, consciência de classe, classes sociais, processos políticos, partidos, educação popular e teoria do Estado. Presidente da ADUFRJ.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

"O Falso dilema de Vitor Gaspar" – "Menos saúde, educação e segurança social ou mais impostos"?





Por: Dr. Eugénio Rosa*
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Cartoon de Fernão Campos. RESUMO DESTE ESTUDO

O dilema de Vítor Gaspar, repetido por ele e por todo o governo, e papagueado nos media pelos seus defensores, de " Menos saúde, educação, e segurança social, ou mais impostos ", tem a mesmo credibilidade que as previsões do governo e da "troika" que sempre falham, ou seja, não tem fundamento real nem credibilidade técnica. É mais uma mentira ideológica que tem como objetivo a manipulação da opinião pública para o governo e o FMI poderem mais facilmente destruir os sistemas públicos de educação, saúde e segurança sociais fundamentais para os portugueses, pois a sustentabilidade financeira das funções sociais do Estado não depende apenas da sua dimensão como pretendem fazer crer, mas fundamentalmente de outros fatores como vamos mostrar.

A "espiral recessiva", de que falou Cavaco Silva, causada pela politica de austeridade tem determinado uma diminuição enorme das receitas fiscais do Estado e das contribuições para a Segurança Social agravando as suas dificuldades financeiras, e pondo em causa a sustentabilidade financeira das funções sociais do Estado. Entre 2011 e 2012, segundo o Ministério das Finanças, as receitas fiscais do Estado e as contribuições para a Segurança Social diminuíram em 3.001 milhões €. Em relação ao OE-2012 inicial do governo a quebra é de 3.833,6 milhões €, um valor praticamente igual àquele que o FMI e governo pretendem agora cortar o que mostra, por um lado, que se existisse crescimento económico tais cortes não se colocavam e, por outro lado, a ignorância deste governo em relação à forma como funciona a economia e a sociedade portuguesa. Este enorme erro de previsão está associado a outros com consequências dramáticas para os portugueses. A divida pública não para de aumentar tendo atingido, em Dez/2012, 124% do PIB, e os juros dela 6.843 milhões € em 2012. Como consequência da política de destruição da economia, a despesa com o subsidio de desemprego aumentou para 2.593 milhões € em 2012. É esta situação, provocada por uma politica irresponsável e destruidora, que põe verdadeiramente em causa a sustentabilidade financeira das funções sociais do Estado.

No entanto, a criação de uma situação financeira insustentável para as funções sociais do Estado não é feita apenas desta forma. Ela também resulta de perda de enormes receitas fiscais pelo Estado. Como consequências das múltiplas deduções no rendimento e de variadíssimos benefícios fiscais de que gozam nomeadamente as grandes empresas em Portugal, o lucro dado pela contabilidade (lucro contabilístico) declarado à Administração Tributária pelas empresas foi, em 2008, de 30.213 milhões €, mas o lucro sujeito a IRC foi apenas 17.594 milhões € (58,2% do total); em 2009, o lucro contabilístico atingiu 30.232 milhões €, mas o lucro sujeito a IRC foi apenas de 16.893 milhões € (55,7% do total); e finalmente em 2010, último ano em que foram divulgados dados, o lucro total dado pela contabilidade atingiu 49.855 milhões €, mas o lucro sujeito a imposto foi apenas 15.150 milhões € (30,4% do total). Se calcularmos a percentagem que o IRC cobrado em cada um daqueles anos representa do lucro obtido pela contabilidade obtém-se as seguintes taxas efetivas de IRC: 2008: 19,6%; 2009: 15%; 2010: 8,6%. O Estado arrecadou nos três anos (2008/2010) 14.764 milhões € de IRC, mas se tivesse aplicado a taxa legal de IRC (25%) sobre o lucro contabilístico teria obtido 27.598 milhões € de receita, ou seja, mais 86,9%.

A agravar esta situação de perda de receita, há ainda a acrescentar os rendimentos transferidos para o estrangeiro que não pagam impostos em Portugal, causando elevados défices na balança de rendimentos de Portugal que não têm diminuído desde a tomada de posse deste governo e a intervenção da "troika". No período 2000-Nov/2012, o saldo negativo acumulado da balança de rendimentos atingiu 71.178 milhões € (o governo gaba-se da redução do défice da balança comercial, mas ignora e esconde este que é mais grave). Este gigantesco défice resulta de transferências maciças de rendimentos (riqueza criada em Portugal) para o estrangeiro. Só neste período (2000-Nov/2012) foram transferidos para o exterior 175.398 milhões € de rendimentos que tiveram como origem investimentos diretos em empresas, aplicações em ações e outras de natureza financeira (lucros, juros, mais-valias, etc.) que não pagaram qualquer imposto em Portugal, o que agravou a situação financeira do Estado e das suas funções sociais. E isto acontece porque a lei fiscal portuguesa continua a isentar esses rendimentos do pagamento de impostos no nosso país, apesar de serem gerados no nosso país, como se prova através de normas do Código do IRC e do Estatuto dos Benefícios Fiscais que se analisam à frente. Qualquer português paga 28% de imposto em tais rendimentos mas aqueles "senhores" não pagam nada. E o governo e o FMI pretendem baixar o IRC. A eliminação destas injustiças, aumentaria a justiça fiscal, e contribuiria para garantir as funções sociais.

Um dado para reflexão. Segundo o Eurostat, a divida pública portuguesa atingiu, em Set/2012, o gigantesco valor de 201.003 milhões €. Se Portugal tivesse de pagar por ela uma taxa de juro de 4,891%, os encargos só com juros atingiriam 9.831 milhões € por ano, o que seria insustentável para o país (seria muito superior ao que o Estado gasta com o SNS ou com a educação). Mas o governo e os seus defensores nos media, procurando manipular a opinião pública, dizem que foi um êxito a emissão de mais 2.500 milhões € de divida com tal taxa. Para os grupos financeiros uma taxa de 5% é um negócio altamente lucrativo (daí a procura exceder a oferta) quando a taxa paga pela Alemanha é entre 0% e 1% .


Mas analisemos as questões anteriores com mais pormenor utilizando para as fundamentar dados oficiais e as normas da lei fiscal portuguesa.

AS DIFICULDADES NO FINANCIAMENTO DAS FUNÇÕES SOCIAIS CAUSADAS PELA POLITICA RECESSIVA QUE ESTÁ A DESTRUIR A ECONOMIA E OS ENORMES ERROS DE PREVISÃO DE VITOR GASPAR

A capacidade do Estado para financiar as suas funções sociais depende do crescimento económico. Uma politica, como aquela que está a ser imposta ao país pela "troika" e pelo governo, que provoca a recessão económica e a destruição da economia, põe inevitavelmente em causa o financiamento do próprio Estado, e das funções que este tem de desempenhar. Alguns dados oficiais tornarão mais clara esta relação entre a economia e capacidade de financiamento do Estado. O quadro 1 mostra o que tem acontecido com as receitas fiscais do Estado e com as contribuições da Segurança Social como consequência da recessão económica causada pela politica de austeridade violenta.

Quadro 1- Receitas fiscais do Estado e contribuições recebidas pela Segurança Social e aumento das despesas com juros e desemprego no período de Janeiro a Dezembro de 2011 e 2012 (Milhões euros)
RUBRICAS
2011
2012
Variação 2011-2012
ESTADO
Receitas fiscais 34.359 32.025 -2.334
Impostos diretos 15.047 13.625 -1.422
Impostos indiretos 19.312 18.401 -912
Despesas com pessoal 10.294 8.432 -1.862
Juros e outros encargos 6.039 6.874 835
SEGURANÇA SOCIAL
Contribuições e quotizações 13.746,3 13.074,3 -672,0
Pensões (*) 14.448,7 14.428,6 -20,1
Subsídio desemprego e apoio ao emprego 2.103,8 2.593,0 489,2
(*) Inclui as pensões do regime contributivo e as pensões do regime não contributivo (ex.: pensões sociais
Fonte: Síntese da execução orçamental Janeiro 2013 - DGO- Ministério das Finanças


Segundo o INE, a "Procura Interna", em termos reais, diminuiu, entre 2010 e 2012, em 11,5% (menos 15.246,3 milhões €) só considerando os três primeiros trimestres de cada ano, o que teve como consequência uma redução importante da atividade económica traduzida, nomeadamente, na falência de milhares de empresas e no disparar do desemprego. Tal facto causou uma quebra enorme nas receitas fiscais do Estado e nas contribuições para a segurança social. Como mostra o quadro 1, entre 2011 e 2012, segundo a "Execução orçamental de Jan.2013" da DGO do Ministério das Finanças, as receitas fiscais do Estado e as contribuições para a Segurança Social diminuíram em 3.001 milhões €. Em relação ao OE-2012 inicial do governo a quebra é de 3.833,6 milhões €, ou seja, um valor quase igual àquele que o governo e o FMI pretendem cortar. No entanto, são estas previsões erradas que têm servido para justificar a politica de austeridade violenta que está a destruir a economia e a sociedade portuguesa. Este enorme erro está associado a outros com consequências dramáticas para os portugueses. A divida pública aumentou significativamente tendo atingido 124% do PIB (207.703 milhões €) em Dez/2012, e os juros e outros encargos com ela atingiram 6.843 milhões € em 2012. Como consequência da politica de destruição da economia, a despesa com o subsidio de desemprego aumentou para 2.593 milhões € em 2012, ou seja, mais 489 milhões € do que 2011).

Esta situação financeira grave do Estado e da Segurança Social, causada pela politica recessiva, tem também sido utilizada pelo governo para fazer cortes significativos nos rendimentos dos trabalhadores da Função Pública e dos pensionistas como os dados do quadro 1 mostram. Portanto, a "troika" e o governo utilizam a situação, criada por eles próprios, para vir agora dizer que é necessário "menos saúde, educação, e segurança social" pública. É este o falso dilema de Vítor Gaspar. Mas a criação de uma situação financeira insustentável para as funções sociais do Estado não é feita apenas desta forma. Ela também resulta dos elevados benefícios e deduções nos lucros concedidos a grandes empresas que fazem o Estado perder enormes valores de receita, que o governo e FMI, como consta do relatório da 6ª avaliação da "troika", querem aumentar com a intenção de transformar Portugal num paraíso fiscal para as grandes empresas, reduzindo ainda mais os impostos que incidem sobre elas, e compensando a perda das receitas com um aumento dos impostos que incidem sobre as famílias (IVA e outros).

PORTUGAL É JÁ UM PARAISO FISCAL PARA AS GRANDES EMPRESAS, MAS O GOVERNO PRETENDE REDUZIR AINDA MAIS O IRC, SUBSTITUINDO POR IMPOSTOS SOBRE OS PORTUGUESES

Portugal é um país onde as grandes empresas, contrariamente ao que acontece com a esmagadora maioria dos portugueses, cujos benefícios que tinham estão a sofrer grandes cortes, como sucedeu com as despesas de saúde e com as despesas do crédito à habitação, e com as PMEs; repetindo, em Portugal as grandes empresas gozam de múltiplos e generosos benefícios fiscais e deduções nos lucros que reduzem o valor que é sujeito a imposto, o que determina que as taxas legais de IRC e de derrama estadual se reduzam para menos de metade, determinando que o Estado perca elevado volume receitas como mostra o quadro 2, construído com os dados mais recentes divulgados pela Autoridade Tributária e Aduaneira do Ministério das Finanças

Quadro 2 – Lucro contabilístico e lucro sujeito a IRC (matéria colectável) – 2008/2010
RUBRICAS
TODAS AS EMPRESAS - Milhões €
2008
2009
2010
1- Resultado liquido positivo do exercício (Lucro contabilístico) 30.213 30.323 49.855
2- Matéria colectável não isenta sujeita a IRC (Lucro sujeito a imposto) 17.594 16.893 15.150
3- Lucro não considerado para efeitos de pagamento de IRC (1-2) 12.619 13.430 34.705
4- IRC cobrado 5.927 4.540 4.297
5- % que IRC cobrado representa do lucro contabilístico (4:1) 19,6% 15,0% 8,6%
6- RECEITAS QUE O ESTADO OBTERIA SE COBRASSE A TAXA LEGAL DE 25% SOBRE O LUCRO CONTABILISTICO 7.553 7.581 12.464
Fonte: Autoridade Tributária e Aduaneira e Relatórios OE 2009-2011

Como consequência das múltiplas deduções no rendimento e de variadíssimos benefícios fiscais que gozam nomeadamente as grandes empresas em Portugal, o lucro dado pela contabilidade (lucro contabilístico) declarado à Administração Tributária pelas empresas foi, em 2008, de 30.213 milhões €, mas o lucro sujeito a IRC foi apenas 17.594 milhões € (58,2% do total); em 2009, o lucro contabilístico atingiu 30.232 milhões €, mas o lucro sujeito a IRC foi apenas de 16.893 milhões € (55,7% do total); e finalmente, em 2010 último ano em que foram divulgados dados, o lucro total dado pelo contabilidade atingiu 49.855 milhões €, mas o lucro sujeito a imposto foi somente de 15.150 milhões € (30,4% do total): Se calcularmos a percentagem que o IRC cobrado em cada um daqueles anos representa do lucro obtido pela contabilidade obtém-se as seguintes taxas efetivas de IRC: 2008: 19,6%; 2009: 15%; 2010: 8,6%. O Estado arrecadou nos três anos (2008/2010) 14.764 milhões € de IRC, mas se tivesse aplicado a taxa legal de IRC (25%) sobre o lucro contabilístico teria obtido 27.598 milhões € de receita, ou seja, mais 86,9%. E isto sem contar com a derrama estadual que varia entre 3% (lucro tributável até 7,5 milhões €, e 5% para superior).

Apesar destas taxas efetivas serem extremamente baixas o governo e o FMI pretendem reduzi-las ainda mais. É evidente que a concretizar-se determinaria que o Estado perdesse maior volume de receitas, o que agravaria ainda mais a sua situação financeira, tornando mais insustentável a situação das funções sociais do Estado. E a justificação falsa que apresentam é que assim atrair-se-ia investimento estrangeiro o que levaria à recuperação económica. Mas continuemos a análise.

PORTUGAL CONTINUA A TER UMA BALANÇA DE RENDIMENTOS ALTAMENTE DEFICITÁRIA, PORQUE AS SAÍDAS DE RENDIMENTOS, QUE NÃO PAGAM IMPOSTOS, SÃO MUITO SUPERIORES ÀS ENTRADAS

O Estado perde um volume enorme de receitas não só devido às elevadas deduções e aos generosos benefícios fiscais que concede principalmente às grandes empresas, que reduz significativamente o lucro sujeito a imposto (no período 2008/2010, em média apenas 48,9% do lucro contabilístico pagou IRC), mas também porque muitos rendimentos gerados em Portugal que são transferidos para o estrangeiro, continuam a não pagar imposto no nosso país. O quadro 2, com dados do Banco de Portugal, mostra a dimensão dessa realidade

Quadro 2 – Rendimentos que são transferidos para o estrangeiro e não pagam impostos em Portugal
ANO
Saldo Balança Rendimentos
Milhões €
Saídas rendimentos investimento direto
Milhões €
Saídas rendimentos investimento de carteira
Milhões €
Saídas rendimentos de outro investimento
Milhões €
2000 -2.570 1.857 2.286 3.437
2001 -3.875 2.156 2.593 5.178
2002 -3.166 1.126 2.908 4.078
2003 -2.307 1.882 2.629 3.445
2004 -2.977 2.336 3.038 3.786
2005 -3.880 3.488 3.337 4.201
2006 -6.316 4.942 5.559 6.279
2007 -7.035 4.608 6.391 8.291
2008 -7.817 4.017 7.586 8.402
2009 -8.728 5.778 7.680 3.186
2010 -7.939 8.476 7.936 2.768
2011 -8.496 5.908 7.742 4.058
2012 (até Nov) -6.072 3.336 5.209 3.484
SOMA -71.178 49.909 64.895 60.594
Fonte: Banco de Portugal, Boletim Estatístico, Janeiro de 2013

No período 2000/Nov.2012, o saldo negativo acumulado da Balança de Rendimentos atingiu 71.178 milhões € (o governo gaba-se da redução do défice da balança comercial, mas ignora e esconde este que não é menos grave).

Este gigantesco saldo negativo resulta da transferência maciça de rendimentos (riqueza criada em Portugal) para o estrangeiro. Só no período 2000-Nov/2012 foram transferidos para o estrangeiro 175.398 milhões € de rendimentos que tiveram como origem investimentos diretos em empresas, aplicações em ações e outras de natureza financeira (lucros, juros, mais-valias, etc). Tudo isto, que é omitido pelo governo e seus defensores nos media, contribui para o agravamento da situação financeira do Estado e das suas funções sociais pois a maior parte desta riqueza criada em Portugal que foi para o exterior não pagou impostos no nosso país. E isto porque a lei fiscal portuguesa continua a isentar esses rendimentos do pagamento de impostos em Portugal, apesar de serem gerados no nosso país, como seguidamente provamos transcrevendo normas do Código do IRC e do Estatuto dos Benefícios Fiscais que se aplicam.

Segundo o nº 3 do artº 14º do Código do IRC
"Estão isentos os lucros que uma entidade residente em território português, coloque à disposição de entidade residente noutro Estado membro da União Europeia que esteja nas mesmas condições e que detenha diretamente uma participação no capital da primeira não inferior a 10 % e desde que esta tenha permanecido na sua titularidade, de modo ininterrupto, durante um ano".

Portanto, basta uma empresa de outro país da UE deter mais de 10% de uma empresa a operar em Portugal para que seja considerada sociedade-mãe, e para que os lucros desta correspondente à participação no seu capital daquela, estejam isentos de pagamento de IRC. E o nº1 do artº 27º do Estatuto dos Benefícios Fiscais dispõe que
"Ficam isentas de IRS e de IRC as mais-valias realizadas com a transmissão onerosa de partes sociais, outros valores mobiliários, warrants autónomos emitidos por entidades residentes em território português e negociados em mercados regulamentados de bolsa e instrumentos financeiros derivados celebrados em mercados regulamentados de bolsa, por entidades ou pessoas singulares que não tenham domicílio em território português e aí não possuam estabelecimento estável ao qual as mesmas sejam imputáveis".

Portanto todas as mais-valias obtidas por não-residentes (e isto inclui sociedades constituídas por portugueses no estrangeiro, como todos os grupos económicos a operar em Portugal possuem, que são exs. Jerónimo Martins, Sonae, o grupo Amorim, etc) resultantes da especulação bolsista estão isentas de pagamento de IRS e de IRC. O artº 30º do mesmo Estatuto estabelece também que
"(1) Ficam isentos de IRC os juros decorrentes de empréstimos concedidos por instituições financeiras não residentes a instituições de crédito residentes, bem como os ganhos obtidos por aquelas instituições, decorrentes de operações de swap, efectuadas com instituições de crédito residentes, desde que esses juros ou ganhos não sejam imputáveis a estabelecimento estável daquelas instituições situado em território português; ( 2) Ficam igualmente isentos de IRC os ganhos obtidos por instituições financeiras não residentes, decorrentes de operações de swap, efectuadas com o Estado, actuando através do Instituto de Gestão do Crédito Público, desde que esses ganhos não sejam imputáveis a estabelecimento estável daquelas instituições situado no território português".

Portanto, os juros pagos pelo Estado português de empréstimos obtidos também não pagam impostos. Finalmente, de acordo com o nº2 do artº 32º do Estatuto de Benefícios Fiscais,
"As mais-valias e as menos-valias realizadas pelas SGPS de partes de capital de que sejam titulares, desde que detidas por período não inferior a um ano, e, bem assim, os encargos financeiros suportados com a sua aquisição não concorrem para a formação do lucro tributável destas sociedades".

Em resumo, a legislação fiscal portuguesa é um autêntico maná para os grupos económicos e financeiros nacionais e estrangeiros, pois a maior parte dos lucros que obtêm em Portugal estão isentos do pagamento de impostos no nosso país, o que não acontece com a maior parte dos portugueses e das PMEs. É por esta razão que os grupos económicos "portugueses" criam empresas em países que funcionam como autênticos paraísos fiscais, como é caso da Irlanda e da Holanda, para onde transferem os lucros obtidos da sua atividade em Portugal, para reduzirem ou mesmo não pagarem impostos, criando assim uma situação de insustentabilidade financeira ao Estado português, e pondo também em causa a sustentabilidade financeira dos sistemas públicos de saúde, educação e segurança Social em Portugal. Tudo isto é necessário que seja alterado.

A eliminação de todas estas situações injustas, que agravam ainda mais as enormes desigualdades existentes no país, aumentaria a justiça fiscal, permitiria baixar a carga fiscal brutal que incide nomeadamente sobre os trabalhadores e pensionistas, e contribuiria certamente para a garantir a sustentabilidade financeira do Estado e, consequentemente, das suas funções sociais.

A IRLANDA FOI TRANSFORMADA EM PARAISO FISCAL PARA AS EMPRESAS, E O SEU DESENVOLVIMENTO É MAIS FICTÍCIO DO QUE REAL, POIS UMA PARTE IMPORTANTE DA RIQUEZA CRIADA É TRANSFERIDA PARA O ESTRANGEIRO NÃO BENEFICIANDO OS SEUS CIDADÃOS

Um dos argumentos mais utilizados pelo governo, pelo FMI e pelos defensores dos grupos económicos é a necessidade, para poder haver crescimento económico, dw o país ser competitivo fiscalmente. E dão como exemplo o caso da Irlanda que tem uma taxa de IRC de 12,5%, e com base nisso defendem que as taxas de impostos que incidem sobre as empresas em Portugal devem ser reduzidas para aquele valor, pois o crescimento económico apareceria como por milagre já que o investimento estrangeiro multiplicar-se-ia. É mais uma ilusão perigosa de natureza ideológica que visa a manipulação da opinião pública porque, por um lado, não resolveria os problemas estruturais da economia portuguesa aumentando ainda mais a sua dependência externa e, por outro lado, agravaria ainda mais a situação financeira do Estado. A prová-lo está a situação de crise grave que enfrenta atualmente a Irlanda onde os salários e pensões sofreram uma redução brutal, em que a taxa de desemprego disparou (entre 2007 e Nov/2012, passou de 4,7% para 14,6%, ou seja, mais que triplicou), onde as condições de vida da população se agravaram imenso, levando milhares de irlandeses a emigrarem na busca de um emprego, tal como acontece em Portugal. Mas, para além de tudo isto, o modelo de crescimento económico irlandês tem determinado que uma parte crescente da riqueza criada anualmente na Irlanda seja transferida para o estrangeiro, não beneficiando os seus cidadãos como mostra o quadro 3 construído com dados divulgados pelo Eurostat.

Quadro 3- % que o RNL (riqueza que fica no país) representa do PIB (riqueza que é criada no país)
click na imagem para ampliar
 
Fonte: Eurostat

Como revelam os dados do Eurostat do quadro 3, na UE a Irlanda é o país que tem a mais elevada parcela da riqueza criada internamente transferida para o estrangeiro. Em 2011, o RNL (Rendimento Nacional Liquido), ou seja a riqueza que em cada ano fica no país, correspondeu apenas a 70% do PIB (riqueza criada anualmente no país), sendo muito inferior à média comunitária que, no mesmo ano, era de 85,3%. Depois da Irlanda, Portugal era já o país logo a seguir onde esse valor era mais baixo pois, 2011, o RNL representava 78,1% do valor do PIB. Por outro lado, se analisarmos um período mais longo (2000/2011), concluímos que essa percentagem diminuiu a nível de todos os países da EU-27 apenas em 0,7 pontos percentuais (p.p.), mas em Portugal desceu 4 p.p., e na Irlanda 5,5 p.p.. Portanto, o modelo irlandês de crescimento económico favorece fundamentalmente os grupos económicos estrangeiros que se instalam no país, os quais se apropriam de uma parte crescente da riqueza criada nele e depois transferem-na para o estrangeiro não beneficiando os irlandeses.

Por outro lado o sistema fiscal irlandês, em conjugação com o holandês, tem sido utilizado pelos grupos económicos multinacionais para não pagarem impostos funcionado, por um lado, como autênticos paraísos fiscais "legais" e, por outro lado, como plataformas de isenção dos lucros, servindo para descapitalizar os estados dos outros países. O exemplo da Google, que se gaba de não pagar impostos, é paradigmático. E o esquema utilizado é conhecido pelos "especialistas" do planeamento fiscal para fugir ao pagamento de impostos como a " sanduíche holandesa" ou " duplo irlandês ". Tal esquema permitiu à Google, segundo a agência Bloomberg, não pagar em três anos (2008/2010) impostos no valor de 2400 milhões €, através de um planeamento fiscal utilizando subsidiárias na Holanda, na Irlanda e nas Bermudas. Para isso, a Google, concentrou numa filial irlandesa a faturação da publicidade vendida em países da UE, como Inglaterra e França. Depois, esta mesma filial irlandesa paga royalties a outra filial irlandesa, cuja sede para questões fiscais se localiza nas Bermudas, reduzindo a matéria coletável na Irlanda onde já pagava uma taxa de reduzida. Depois, os lucros assim reduzidos obtidos na Irlanda são transferidos para uma empresa criada pela Google na Holanda, país este que assinou inúmeros acordos de não tributação até com paraísos fiscais, o que determina que os grupos económicos acabem por não pagar quaisquer impostos quer na Holanda quer depois no paraíso fiscal. São exemplos desta natureza, que estão a facilitar o não pagamento de impostos pelas grandes empresas multinacionais que o governo e o FMI pretendem que Portugal copie o que, a concretizar-se, só poderá agravar as dificuldades financeiras do Estado, e pôr em causa a sustentabilidade financeira das funções sociais deste, e o agravamento das condições de vida dos portugueses que serão obrigados depois a pagar impostos para compensar o não pagamento pelos grandes grupos económicos e financeiros.

*Eugénio Óscar Garcia da Rosa, licenciado em Economia e Doutorado pelo ISEG, Universidade Técnica de Lisboa, com a tese "Grupos Económicos e Desenvolvimento em Portugal no Contexto da Globalização" tendo sido atribuida a classificação "Muito Bom com Distinção por Unanimidade", Mestre em Ciências da Comunicação pelo ISCTE e Universidade Aberta, membro do Gabinete de Estudos da CGTP-IN e responsável pelo Gabinete Técnico da Federação Nacional dos Sindicatos da Função Pública. Email:edr2@netcabo.pt

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