"Marx, hoje, volta a rondar a Europa, os EUA, a Ásia, nossa América
Latina. Não somos mais um mero espectro. Somos cada vez mais de carne, osso,
sangue e sonhos, enquanto eles se transformam a cada dia em fantasmas."
A atual crise do capitalismo mundial, além das
graves consequências que traz para os trabalhadores, acabou por propiciar um
efeito direto no debate teórico e acadêmico: uma retomada das ideias de Marx.
Por que isso ocorre? Que tipo de previsão foi realizada por Marx que o faz tão
maldito, perseguido e tão renitente em nascer e renascer cada vez que o julgam
morto em definitivo?
Passamos, nós marxistas, pelas décadas de 1980 e
1990 resistindo no universo acadêmico como se fôssemos dinossauros anacrônicos,
insistindo em teses que desmoronam diante das "evidências" pós-modernas, que
afirmavam o fim da validade da teoria do valor, o fim da centralidade do
trabalho, das classes e, por consequência, das formas organizativas e dos
projetos políticos próprios da classe trabalhadora.
Karl Offe chegou a afirmar que, depois das ideias de
Touraine, Foucault e Gorz, o pensamento marxista não teria mais muita
"respeitabilidade cientítico-social". O próprio Keynes, que alguns se preparam
para resgatar como balsamo benígno contra os males da desregulação, sobre O
Capital de Karl Marx decretou:
"Como posso aceitar uma doutrina que
estabelece como bíblia, acima e além de qualquer crítica, um manual econômico
obsoleto que reconheço não só como científicamente errôneo, mas também sem
interesse ou aplicação para o mundo moderno?"
Logo na sequência do mesmo texto, Keynes confirmará sua postura
"científica" ao declarar preferir a burguesia que "apesar de suas falhas,
representa a prosperidade" e certamente leva as "sementes de todo avanço
humano", criticando aqueles que "preferem a lama ao peixe" e "exaltam o
proletariado rude" contra a burguesia.
Parece que a burguesia continua,
em sua incansável rota em direção ao avanço humano, cometendo "algumas falhas",
que ameaçam a humanidade para garantir o avanço do capital. O proletariado rude,
imerso na lama na qual tem que viver, mais uma vez tenta compreender a natureza
da vaga que ciclicamente o afoga e, mais uma vez, o velho Karl Marx se levanta
de seu descanso no cemitério de Londres para assombrar os respeitáveis senhores
da ciência.
Qual seria o elemento teórico que encontramos em O
Capital que permite que Marx seja ainda tão contemporâneo? Primeiro,
poderíamos dizer que Marx era, de certa forma, mais anacrônico em sua época do
que agora. Como pensa o capital como um conceito, um movimento do real que
dialeticamente transita através de suas formas e, sendo histórico, nasceu, se
desenvolveu e um dia irá ser superado, Marx projeta, pela análise precisa do ser
do capital, aquilo que denomina de modo de produção especificamente capitalista,
ou seja, um mundo subsumido inteiramente ao metabolismo do capital, no qual
reina a subordinação real do trabalho ao capital, no qual a mercadoria e o
dinheiro são realidades universais, subordinando o valor de uso ao valor de
troca.
Ao projetar o capital maduro e completo é que Marx pode avaliar o
processo possível de sua superação. Um procedimento que os antigos, antes que os
pós-modernos convencessem o mundo acadêmico a aderir a um novo agnosticismo,
chamavam de ciência. Ora, este capital maduro estava longe de corresponder à
realidade de meados do século XIX; no entanto, para desespero da respeitável
intelligentsia, o capitalismo contemporâneo se parece muito mais com a previsão
de Marx do que com a projeção mítica anunciada pelos arautos do liberalismo e da
economia política.
Apesar de autores como Boaventura de Souza Santos
afirmarem que, considerando os três gigantes clássicos do pensamento social
(Marx, Durkheim e Weber), Marx teria sido entre eles o que "errou de forma mais
espetacular". Mas o desfecho do mundo burguês
no inicio do século XXI se caracteriza inequivocamente por uma constatação: o
mito liberal morreu!
Qual é a essência do mito liberal e como Marx se
contrapôs a ele? O fundamento do mito liberal pode ser resumido da seguinte
maneira: o capitalismo é um sistema virtuoso, pois permite que cada um, buscando
seu próprio interesse egoísta, contribua para o estabelecimento do bem comum.
Dessa maneira, é o único que pode articular de maneira eficiente os valores do
indivíduo, da liberdade, da propriedade e da igualdade. O capitalista busca
lucro, mas para obtê-lo produz mercadorias e para tanto gera emprego. O
trabalhador quer pagar suas contas e viver e por isso vende sua força de
trabalho. Com seu salário compra as mercadorias oferecidas pelos capitalistas e
assim se fecha o ciclo. O burguês tem seu lucro, o trabalhador seu salário e a
sociedade cada vez mais mercadorias com que satisfazer suas necessidades.
O sistema capitalista seria, ainda, virtuoso não apenas pelo equilíbrio
entre interesses individuais egoístas e interesse geral, mas por sua dinâmica:
quanto mais o capital produz mercadorias, mais contrataria, mais salários
distribuídos intensificariam o consumo, que levaria a nova produção, mais
contratações e novos salários que induziriam ao aumento do consumo e assim por
diante, da melhor forma possível e no melhor dos mundos.
Recentemente, o
presidente Lula conjurou o mito com todas suas letras ao afirmar que diante da
crise os trabalhadores em vez de pedir aumento deveriam fazer com que suas
empresas produzissem mais, para aquecer o Mercado, atender as necessidades do
mercado consumidor e daí garantir, não apenas empregos como a possibilidade
futura de melhores salários.
Apesar da fé consagrada de muitos ao mito,
Marx escreveu O Capital para comprovar a falácia deste argumento central
do pensamento burguês. Podemos resumir desta forma as principais conclusões do
pensador alemão para contrapor uma visão científica à ideologia liberal: a)
quanto mais cresce a concorrência entre os capitalistas, menor é a livre
concorrência e maior é a tendência ao monopólio; b) nas condições de uma
concorrência entre monopólios, os capitalistas tendem sempre a investir mais em
capital constante (máquinas, instalações, novas matérias primas, etc) para
aumentar a produtividade do trabalho, do que em capital variável (a compra da
força de trabalho) alterando drasticamente a composição orgânica do capital em
favor do trabalho morto; c) o resultado aparentemente paradoxal desse processo é
uma tendência à queda na taxa de lucro, ou seja, quanto mais o capital cresce,
maior é a produtividade do trabalho pela aplicação consciente da técnica e da
ciência ao processo de trabalho, quanto mais o capital se torna monopolista e
mundial, menor é a taxa de lucro.
Na verdade, a tautologia liberal
afirma que quanto mais o capital cresce, mais ele cresce. O que Marx anunciou
pela dialética do capital, compreendido pela minuciosa análise que se nega a
permanecer na superfície aparente dos fenômenos, é que quanto mais o capital
cresce, mais ele produz a crise que é própria à sua natureza, ou seja, de ser
valor em constante processo de valorização, ou seja, uma crise de
superacumulação que se combina de forma explosiva com manifestações de
superprodução, subconsumo e queda tendencial da taxa de lucro.
O fato
desconcertante para os adeptos dos planos de aceleração do crescimento, ou da
irracionalidade exuberante como batizou Greenspan (ex-presidente do Banco
Central norte-americano), é que o que causa a crise não é a carência, mas a
abundância, a pletora. Um raciocínio típico de Marx, isto é, não argumenta com o
adversário teórico pela negação de sua tese, mas pela suposição de sua plena
realização. No caso concreto de nossa análise, afirma que a dinâmica do capital
leva à aparente confirmação do mito liberal, levando a sociedade a uma espiral
irresistível de produção, consumo e reinvestimento; no entanto este
reinvestimento sempre se dá, pela própria concorrência, seja livre ou
monopólica, alterando a composição orgânica em favor do capital constante e,
portanto, alimentando a queda tendencial da taxa de lucro.
No momento
agudo deste processo, o capital realizado ao final do ciclo, e que deveria
voltar ao início como novo capital inicial, encontra todo o metabolismo do
capital saturado de investimentos, muitos meios de produção instalados, muitos
trabalhadores empregados, muitas mercadorias produzidas, e tudo isso com taxas
de lucro menores. Em momentos normais, o capital migra para outra área, seja
para produzir outro tipo de mercadoria, seja para outra região em busca de
elementos que possam baratear seus custos com força de trabalho, matérias primas
ou outros elementos do capital constante. No entanto, nas épocas que antecedem
às crises, considerando o capital total, é como se o capital não encontrasse
onde aportar e começa a parar.
Como o capital é, antes de qualquer
coisa, movimento do valor em constante processo de valorização, sua crise ocorre
quando este movimento se paralisa em algum ponto do ciclo do capital: como
dinheiro que não consegue virar crédito, como capacidade instalada e ociosa,
como força de trabalho contratada e impedida de trabalhar, como mercadoria
produzida e que não encontra o consumo na proporção de sua oferta, ou ainda
pior, como consumo realizado que alimenta a fogueira da superacumulação.
Para que possamos entender o desfecho da crise e, principalmente, os
efeitos sobre a classe trabalhadora, é necessário recorrer a um raciocínio
essencial que Marx desenvolve ao tratar de sua tese sobre a queda tendencial da
taxa de lucro no Livro III de O Capital: as contratendências.
Marx precisava defender sua tese em um momento no qual o mito liberal
esbanjava saúde. A primeira grande crise do capital, entre os anos 1870 e 1880,
ofereceu para o autor os elementos centrais de sua afirmação. No entanto, o
capital estava destinado a sair dessa crise e de outras. É preciso não confundir
a teoria de Marx sobre a crise com qualquer afirmação messiânica sobre uma crise
final catastrófica que levaria por si mesma ao fim do capitalismo. Para o autor, o capital desenvolveria elementos
contra-tendenciais que fariam da queda na taxa de lucro uma tendência e das
crises uma realidade cíclica, ou seja, em outras palavras, não se trata de uma
linha descendente que culmina no fim do poço, mas de um movimento de
crescimento, auge, crise e retomada até novo ápice que leva a uma nova crise.
As chamadas contratendências seriam
todas as ações empreendidas pelo capital no sentido de se contrapor à queda na
taxa de lucro. Podemos resumi-las da seguinte maneira: a) aumento do grau de
exploração da classe trabalhadora, seja pelo aumento da jornada de trabalho,
seja pela intensificação do trabalho; b) redução dos salários; c) redução dos
preços dos elementos do capital constante, tais como buscar matérias-primas mais
baratas, máquinas mais eficientes, subsídios para insumos e serviços essenciais
como aço, mineração, energia, armazenamento, transporte e outros; d) formação de
uma superpopulação relativa, ou seja, reunir um contingente de força de trabalho
muito além das necessidades do capital e mesmo além do exército industrial de
reserva como forma de pressionar o valor da força de trabalho para baixo; e)
ampliação e abertura de mercado externo como forma não apenas de desovar o
excedente produzido, como de encontrar fontes de matéria prima e recursos
abundantes, barateando seus custos; d) o aumento do capital em ações, isto é,
buscando compensar a queda na taxa de lucro com juros oferecidos pelo mercado de
papéis oferecidos por empresas ou por títulos do Estado.
Notem que todas
as contratendências escondem um sujeito oculto. Trata-se, já no final de O
Capital, de mais um embate, este decisivo, contra a ideologia liberal. Quem
administra os limites da exploração do trabalho, seja pelo tamanho da jornada,
seja pelas condições gerais da contratação? Quem determina os limites legais da
compra da força de trabalho e seu valor? Quem pode baratear os elementos do
capital constante por meio de subsídios, créditos facilitados, isenções e outros
meios conhecidos? Quem assume o custo de administração, manutenção e controle
sobre uma superpopulação relativa cujo papel é nunca entrar no mercado e
trabalho? Quem representa os interesses das corporações monopólicas na
ampliação, conquista e manutenção de mercados em disputa com outros monopólios?
Finalmente, quem se presta ao papel de oferecer títulos que remuneram com taxas
de juros generosas sem se preocupar em perder dinheiro ou comprar de volta
títulos podres e sem valor?
Esse sujeito, que mal se oculta, só pode ser
o Estado! Eis que se desmorona a mãe de todos os mitos liberais: o Estado não
deve intervir na livre concorrência entre os indivíduos pela disputa de riquezas
e propriedades, resumido na tese da não intervenção estatal na economia. Para
Marx, o Estado sempre foi um fator determinante no sociometabolismo do capital,
em seu nascimento na acumulação primitiva de capitais, na garantia das condições
gerais chamadas de extraeconômicas (garantia da propriedade, subordinação legal
e institucional da força de trabalho ao capital, defesa da ordem, etc.) no
período de ouro do liberalismo, na representação dos monopólios na partilha e
repartilha do mundo, fazendo dos interesses das corporações o interesse
nacional; e, por fim e mais importante, nos momentos de crise em que o custo da
exuberância irracional, que levou à apropriação indecente da riqueza socialmente
produzida na forma de acumulação privada, tem que ser socializado por toda a
Nação.
Além do evidente papel do Estado no comando e gerenciamento das
contratendências, fica evidente o caráter de classe destes mecanismos, o que nos
ajuda a entender os efeitos que recairão sobre os trabalhadores. A
intensificação da exploração, que leva ao aumento do desgaste da força de
trabalho e à intensificação dos acidentes e das doenças profissionais; a redução
de salários, assim como a precarização das condições de contratação, com
relativização e perda de direitos; o aumento da superpopulação relativa, que tem
por base a intensificação da expropriação dos camponeses e de todos que ainda
conseguem manter seus meios diretos de trabalho, e que leva à explosão urbana
com todas suas consequências conhecidas no campo da habitação, dos serviços
essenciais como educação e saúde, mas também no que se refere a questão da
violência e da criminalidade.
Mesmo as ações que aparentemente não se
relacionam diretamente com o agravamento das condições de exploração e a
precarização das condições de vida dos trabalhadores acabam por ter efeitos
muito sérios sobre a vida de quem trabalha. Os subsídios e isenções ao capital,
para baratear os elementos do capital constante ou ajudá-los a manter seus
patamares de venda, só podem sair do fundo comum do Estado e, portanto, à custa
de cortes dramáticos em serviços públicos duramente conquistados. Só em uma
semana, o governo brasileiro gastou R$50 mil milhões para manter o valor do
dólar, enquanto durante todo o ano anterior foram gastos um pouco mais de R$ 20
mil milhões com a saúde, apenas para ficar em um exemplo. As fortunas gastas
para manter bancos em funcionamento só podem sair do recurso público numa clara
expressão de privatizar a pequena parte da produção social da riqueza que ficou
no espaço publico, sem que em nenhum momento se questione o volume da riqueza
que no ciclo de crescimento permaneceu na esfera da acumulação privada.
Talvez o mais grave quanto aos efeitos da ação do Estado na gestão das
contratendências para os trabalhadores e a própria humanidade seja um aspecto
para o qual Marx não deu maior atenção: a expansão do mercado externo. Quando
Marx escrevia o último livro de O Capital, a ordem monopolista mal fazia
sua estreia histórica. Para o autor, tratava-se apenas de encontrar mercados
para os produtos e encontrar fontes de matérias-primas. Ocorre que, com o pleno
desenvolvimento dos monopólios, passa a ser decisivo, como estudou mais tarde
Lenin, a exportação de capitais, e daí a necessidade de controle das áreas de
influência, levando a constante partilha e repartilha do globo, primeiro entre
os monopólios e depois entre as nações que os representam, levando à Guerra.
A fase imperialista e a prática da guerra, que lhe é inseparável,
fizeram desta contratendência quase que a síntese da ação do Estado em defesa do
capital e da manutenção de suas taxas de lucro contra a tendências das mesmas em
cair. Não apenas pela enorme destruição material que a Guerra causa, abrindo
campo para novas inversões em condições de lucratividade retomada em patamares
aceitáveis para o capital, como pelo próprio estabelecimento de um complexo
industrial-militar que vende ao Estado mercadorias que terão que ser
substituídas quer sejam ou não usadas (como no caso do arsenal nuclear), como
teorizou de forma precisa Mészáros.
Podemos resumir, afirmando que, na
dinâmica das contratendências, as vítimas são os trabalhadores, os beneficiários
a burguesia monopolista e o instrumento o Estado, não apenas como aparato
técnico jurídico-adiministrativo, mas também e principalmente pela capacidade
que lhe é própria de apresentar como universal um interesse que é particular.
Nesse campo, o da luta política, a crise é o momento de retirar da gaveta do
arsenal da política burguesa a tese do pacto social.
No momento da crise
se reapresentam todas as alternativas em disputa. Podemos resumi-las em três
posições: a) a afirmação de que tudo não passa de um incidente, mais ou menos
grave, mas de qualquer forma um incidente que não compromete a estrutura do
mito, ou seja, basta voltar a crescer que os empregos voltam, o consumo cresce,
e tudo volta ao círculo virtuoso do capital; b) a retomada da crítica
keynesiana, que aparece simultaneamente como afirmação da ordem do capital com
todos os elementos que lhe são próprios (inclusive a livre concorrência), mas
que afirmará a necessidade de retomar mecanismos de regulação, ou seja, não se
trata de evitar a livre concorrência, mas de regular certos aspectos para que
suas consequências inevitáveis não gerem condições catastróficas que possam
levar ao questionamento do sistema; c) a alternativa socialista, ou seja, aquela
que se fundamenta na afirmação sobre a necessidade da produção social da riqueza
ser gerida também de forma social, levando à acumulação social da riqueza ser
concebida como valor de uso e não mercadoria.
No presente quadro, a
primeira, um pouco na defensiva e sem a arrogância que caracterizou o último
ciclo, não desaparecerá. Ela se inscreverá na afirmação que basta o Estado dar
os elementos para que o capital volte a crescer, sem que interfira na disputa
econômica direta, por exemplo, através das estatizações. A segunda, de corte
keynesiana, será a mais ativa e, portanto, mais enganosa e perigosa para os
trabalhadores. Sob o manto de uma necessidade comprovada de maior regulação, que
deverá se inscrever nos limites do mundo financeiro, pode chegar até a defender,
como aliás já está acontecendo, algumas ações estatizantes. No entanto, esta
opção mal esconde uma enorme luta política que marcou o século XX. Foi preciso
ceder a determinadas demandas dos trabalhadores, por direitos e condições de
vida, frente à ameaça de superação revolucionária da ordem, representada pelo
advento da revolução Russa de 1917.
A solução keynesiana, que não se
revestiu no século XX necessariamente com a forma de um Welfare State social
democrata de perfil europeu, nos EUA prevaleceu com o New Deal, mantendo a base
de uma economia de mercado fundada na livre concorrência, e na América Latina,
por exemplo, a regulação estatal se deu na forma de ditaduras militares mais
preocupadas com o Estado do que com o bem-estar. No quadro conjuntural atual, de
inflexão política, de desmonte e isolamento das tímidas alternativas de
transição socialista iniciadas no século XX, os regulacionistas tendem a se
comportar mais como liberais contidos e responsáveis do que como social
democratas.
Aos trabalhadores cabe uma outra ordem de tarefas. Primeiro:
resistir, não aceitando que o ônus da crise recai sobre o setor que mais se
penalizou no ciclo de crescimento. Não apenas lutando para que nenhum direito
lhe seja retirado, como se recusando a proposta do tipo redução de jornada com
redução de salário ou qualquer precarização de suas já precárias condições de
contrato e de trabalho. Segundo: forçar o Estado para que se recuse a usar o
recurso público para dirimir perdas ou incentivar produtividade de um setor da
economia monopolizada, que lucrou fortunas e as acumulou privadamente. Enquanto
o governo se regojiza com a informação de que os 20% mais pobres passaram de
U$1,00 por dia para U$2,00 de maneira que saíram de uma posição que os colocava
abaixo da linha da miséria para uma condição de dignidade duvidosa na linha da
miséria, as 500 maiores empresas do Brasil, entre 2002 e 2007 viram seus lucros
saltarem de R$ 2,9 mil milhões para R$43 mil milhões.
Em terceiro lugar,
está na hora de a classe trabalhadora deixar de optar entre qual é a ortodoxia
burguesa que mais lhe convém, se a liberal ou a keynesiana, e dizer a pleno
pulmões que as previsões liberais ou regulacionistas, que prometiam que o
crescimento econômico levaria a uma paulatina diminuição das desigualdades
sociais e a um mundo justo e equilibrado, naufragaram triunfalmente. Depois os
marxistas é que são acusados de "determinismo econômico"! O que é a tese de que
os problemas sociais só se resolverão com o crescimento econômico de tipo
capitalista senão a mais mecânica afirmação economicista?
O Brasil tinha
como modelo os EUA e a Europa. Queríamos, na expressão de Galeano, ser como
eles. Pois bem, já somos. Somos parte integrante do sistema capitalista mundial,
no papel que nos cabe, como área de saque do imperialismo. Uma área especial
que, devido ao grau de investimento imperialista dos grandes monopólios,
constituímos como uma formação social com um capitalismo moderno e completo que
inclusive ensaia seus primeiros movimentos no sentido do imperialismo
tupiniquim, como tem teorizado Virgínia Fontes, sem, contudo, nunca sair de
baixo das asas dos centros hegemônicos do imperialismo mundial.
Devemos
recusar o papel miserável de entrar no debate que busca "como sair da crise".
Devemos pautar o debate, o único que interessa aos trabalhadores, sobre qual
forma de sociabilidade atende os interesses reais dos trabalhadores e da
humanidade e pode, de quebra, evitar que ciclicamente todo o esforço produtivo
seja destruído por uma nova crise que, para salvar o capital e suas taxas de
lucro, destrói produtos, fábricas e seres humanos em uma escala genocida. Para
nós, marxistas, existe essa alternativa: é necessário e urgente que a produção
social da vida liberte-se das relações sociais de produção de tipo capitalista,
superando a propriedade privada dos meios de produção e desenvolvendo as forças
produtivas materiais como recursos coletivos e patrimônio da humanidade, e não
propriedade dos monopólios burgueses, de maneira que possamos caminhar para a
superação da forma mercadoria e afirmar a centralidade do valor de uso.
Nossa meta socialista pode ser compreendida por aqueles que nos
interessam que a compreendam? Em grande parte esta é a arte da política, como
disse Bourdieu: a política é a arte de "fazer crer que se pode fazer o que se
diz". Nós acreditamos que sim e que podemos
expressar os fundamentos de nossa proposta através de três afirmações muito
simples: 1) ninguém pode se apropriar de recursos necessários à produção das
condições que garantem a existência coletiva da humanidade; 2) ninguém pode se
apropriar em caráter privado da força de trabalho humana, pois ela é a principal
força de produção e o principal recurso comum da espécie para garantir sua
existência, não podendo assumir a forma de uma mercadoria; e 3) a riqueza
coletivamente produzida não pode ser acumulada privadamente.
Como dizia
Brecht, "uma coisa muito simples, dificílima de ser feita". No entanto, nesse
ponto a crise nos ajuda, Nunca ficou tão didático o caráter destrutivo da atual
forma do capitalismo monopolista e imperialista, nunca ficou tão evidente a
falácia do mito liberal, nunca foi tão urgente dotar a humanidade de uma
alternativa para além da ordem do capital.
Os liberais, velhos, neos e
recentes; os pós-modernos, pós-industriais, pós-socialistas; todos timidamente
voltam ao "refugo das livrarias vermelhas", ao qual Keynes havia condenado a
leitura marxista como nada tendo de aplicabilidade prática para os tempos
modernos, para discretamente voltar a ler Marx e entender o que se passou e o
que seus ideólogos não conseguem lhes explicar. Marx, hoje, volta a rondar a
Europa, os EUA, a Ásia, nossa América Latina. Não somos mais um mero espectro.
Somos cada vez mais de carne, osso, sangue e sonhos, enquanto eles se
transformam a cada dia em fantasmas.
Notas 1 Apresentado inicialmente no Seminário
sobre a Crise Econômica Mundial, promovido pelo PCB São Paulo em novembro de
2008 e modificado para a publicação.
2 Offe, Claus.
Capitalismo
desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 195.
3 Keynes, John
Maynard.
A short view of Rússia [1925]. Apud Meszáros, Istvan.
Para
além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002, p. 16.
4 "Max Weber e
Durkheim falharam menos estrondosamente que Marx nas suas previsões". (Santos,
Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na
pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1999, p. 34.) Do mesmo autor podemos citar a
seguinte passagem: "Se o marxismo é uma ciência tem que se submeter à prova dos
fatos e os fatos não vão no sentido previsto por Marx" (idem p. 25)
5
Para uma análise crítica sobre a tese da crise final, ver
O encontro da
revolução com a História, de Valério Arcary (São Paulo: Xamã/ Institute Rosa
Sundermann, 2006)
6 Ver o capítulo XIV, do livro III, volume 4 de
O
Capital de Karl Marx.
7 Bourdieu, Pierre.
O poder simbólico.
Rio de Janeiro: Bertran Brasil, 1998, p. 185.
Sobre o autor, Mauro Luís Iasi -Professor adjunto da ESS da UFRJ. Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (1999) e Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2004). Participa do Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas (NEPEM- ESS - UFRJ). Educador popular do NEP 13 de Maio. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociologica, Sociologia Política e Sociologia do Trabalho. Concentra sua atenção atualmente nos seguintes temas: ideologia, consciência de classe, classes sociais, processos políticos, partidos, educação popular e teoria do Estado. Presidente da ADUFRJ.