quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Recensão da obra de Herbert Marcuse, "O Homem Unidimensional" ( III )

Por:
João Valente Aguiar 

Recensão da obra One-dimensional man de Herbert Marcuse: MARCUSE, Herbert (2002 [1964]) – One-dimensional man. London: Routledge. ISBN 0-415-28977-7. p.3-86

                                                  III Capítulo

O terceiro capítulo de “Homem Uni-Dimensional” – “A conquista da consciência infeliz [unhappy]” – gira à volta do conceito de desublimação repressiva.

«A integração na área da cultura (...) na lógica do progresso da racionalidade tecnológica» (Marcuse, idem, p.59) é sinónimo do fechamento do universo cultural. O «(...) campo das produções culturais (...)» (Bourdieu, 2001, p.37) tinha como pólo de diferenciação funcional – a distinção – a alta cultura. Segundo Marcuse, a «(...) alta cultura esteve sempre em contradição com a realidade social» (Marcuse, idem, p.60), o que assegurava a existência de duas dimensões na sociedade. O fim desta díade dimensional ocorreu, não por obra da «(...) negação e rejeição dos valores culturais, mas através da sua incorporação global nos parâmetros da ordem estabelecida, por intermédio da sua oferta e reprodução numa escala massiva» (Marcuse, idem, p.60). Ou seja, estamos diante o que Walter Benjamin denominou de “reproductibilidade técnica da obra de arte”, em que «quanto maior o significado social de uma [obra de] arte, diminui e tanto mais se afastam no público as atitudes críticas e de fruição (...)» (Benjamin, 1992, p.104). Na realidade, a massificação do uso (e usufruto) da obra de arte, na sua forma reproduzida, obedece ao princípio de «(...) tornar a alta cultura parte da cultura material» (Marcuse, idem, p.61). Porém, esta expansão da produção artística para o terreno da vida do comum mortal não é significado de democratização cultural. De um lado, temos a perda da aura da obra de arte, expressa no «(...) valor singular da obra de arte autêntica que tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro (...)» (Benjamin, 1992, p.82). De outro lado, temos «a invalidação da sua força subversiva, o seu conteúdo destruidor (...)» (Marcuse, idem, p.64). O exemplo da proliferação do quadro “Guernica”[12] de Picasso, é sintomático desta tendência de banalização das suas potencialidades subversivas e/ou revolucionárias.


Estamos diante de uma análise bastante interessante de Marcuse – aliás, onde se nota a influência da Escola de Frankfurt – faltando-lhe apenas uma categorização social mais apurada. Quer dizer, a alta cultura, a cultura das práticas cultivadas, tinha (e tem) o seu estatuto de distinção, no sentido mais bourdiano do termo. Objecto de fruição das classes dominantes, a alta cultura assume foros distintivos face a outras expressões culturais, porque congrega uma distância entre si e os outros – isto é, tem um uso social – porque esta cultura de elite «(...) só se transforma numa diferença visível, perceptível, não-indiferente, socialmente pertinente, se for percebida por alguém capaz de estabelecer a diferença» (Bourdieu, 2001, p.10).


A «(...) reconciliação cultural (...)», fruto do «(...) poder absorvente da sociedade (...)» desvanece «a dimensão artística por assimilação dos conteúdos antagónicos» (Marcuse, idem, p.64), reflecte-se, dessa forma, na própria percepção de personagens literárias. Se no século XIX o poeta rebelde (Lord Byron, Georg Büchner), o diabo (Drácula) ou o louco (Raskolnikov), eram sintoma de uma certa oposição à realidade social e de criação livre do artista, hoje, não passam de banais figuras passíveis de consumo e entretenimento acríticos: Spiderman, Mr. Bean, Margarida Rebelo Pinto, etc.


No sentido de se perceber a perda da aura artística, Marcuse vai focalizar o poder de negação que a arte (já não) possui. Este poder da ficção apela, precisamente «(...) para a subversão da experiência quotidiana, e mostra-a mutilada e falsa» (Marcuse, idem, p.65). Franz Kafka disse, mais ou menos, o mesmo: «a lenda procura explicar o inexplicável. Como ela nasce de um fundo de verdade, tem de voltar ao inexplicável» (Kafka, 2001, p.16), com a acentuação da autonomia relativa do campo artístico, espelhada no vaivém: inexplicável (arte/lenda) – verdade (real) – inexplicável (arte/lenda).

A exposição anterior concretiza-se numa necessidade de delimitar o nível social da produção de conteúdos artísticos com as suas funcionalidades específicas e sua subordinação, em última instância, à lógica capitalista.


Portanto, a «(...) decisiva distinção e diferenciação entre realidade social e artística (...)» (Marcuse, idem, p.66), obedece ao que Raymond Williams denominou de «(...) imaginação criativa: ou seja, a capacidade de encontrar e organizar novas descrições da experiência» (Williams citado por Cevasco, 2001, p.53).

Aliás, o pensador húngaro Georgy Lukacs, vai propor o conceito de realismo como uma «(...) tomada de posição perante a realidade (...)» como um «(...) critério para julgar a produção artística» (Lukacs citado por Frederico, 1997, p.34). Dessa forma, os maiores artistas são aqueles capazes de resgatar e recriar a totalidade da vida humana, onde numa sociedade degradada como a capitalista, em que o social e o individual estão inelutavelmente dissociados, cabe ao artista uni-los de novo numa totalidade – consagrada na personificação como a textualidade de um poema ou a variedade cromática do óleo na tela – através do realismo.

Marcuse percebeu que a circulação de bens culturais controlada pelo mercado dos capitalistas privados, e não apenas no mercado dos bens simbólicos, obriga à sua transformação em objectos comerciais. Assim, a privação de uma linguagem e de um código de leitura da expressão artística criou os meios de para uma sobreposição castrante da lei do valor sobre as produções culturais.

A partir deste momento, a lógica dominante da criação de arte, passou a ser a do best-seller, do leilão de quadros, do número de entrevistas, dos prémios recebidos, do exacerbar do ego(ísmo). Nas franjas, no underground, a criação do belo e a combinação da estética com o desvendamento do mundo, são continuamente ostracizadas pelos agentes de divulgação cultural (museus, editoras, televisões, escolas de belas-artes, etc.) – não só porque não são vendáveis para um mercado cada vez mais esterilizado, mas também porque os seus códigos de expressividade estética não coincidem com os do pólo dominante do campo.

Concordamos, neste ponto, com Marcuse, que as várias formas de expressão artísticas não foram capazes de obstaculizar a perda de uma certa radicalidade discursiva e performativa.

Todavia, consideramos que a instância artística não se estilhaçou por completo e não perdeu toda e qualquer fronteira com os outros campos sociais.

Do nosso ponto de vista sucedeu-se, de facto, uma penetração acentuada das dinâmicas das leis económicas viabilizadoras da mercadorização dos bens e produtos sociais. Entrada (sub-reptícia) nos vocabulários da arte, a dois níveis diferenciados:

1. nível económico-artístico; dada a predominância do campo de produção de mercadorias numa formação social, só a obra de arte que proporcionar lucro é que existe. Tudo o que não caiba no mainstream, marcado pela dominação do económico, é como se não fizesse parte da realidade social, acabando marginalizado.

2. nível artístico propriamente dito; o precário grau de autonomia do campo cultural, sofre a invasão da ideologia típica do economicismo: o individualismo. A propensão para enaltecer o mérito individual, a vitória sobre (e o passar por cima dos) outros, em íntima associação com o espírito comercial marcam novos traços nos habitus dos artistas.

Neste cenário, a resposta advogada por Marcuse, tributária do teatro de Brecht[13], parte da problematização da possibilidade de representar (a mimésis) o mundo contemporâneo na arte. A partir daí, o «(...) mundo contemporâneo pode ser representado, mas apenas se o for enquanto sujeito para a mudança – como estado de negatividade do que está negado na sociedade» (Marcuse, idem, p.69-70). Denota-se, nesta transcrição, que o pessimismo de Marcuse, no que diz respeito à mudança social, é aqui atenuado por uma resistência confinada, apenas, ao mundo artístico.

Mais para o final do capítulo, o autor, numa linha fortemente influenciada pela psicanálise, vai enfatizar a repressão da libido sexual.

Utilizando uma exposição comparativa entre “fazer amor” num bosque ou num automóvel, ou, dar um passeio com a companheira no campo ou numa rua de Manhattan, Marcuse acentua o facto de que «o ambiente mecanizado parece bloquear a auto-transcendência da libido (...)» (Marcuse, idem, p.75). Logo, a «(...) diminuição do erotismo e a intensificação da energia sexual, em resultado da realidade tecnológica, limita o alcance da sublimação» (Marcuse, idem, p.77).Assim, o corpo vai ocupar um papel central na exteriorização da procura de satisfação sexual, mais do que erótica.

Esta desublimação ajustada pelo «(...) progresso tecnológico e pelo conforto do modo de vida actual, permite a inclusão dos componentes libidinais no quadro da produção e troca de mercadorias» (Marcuse, idem, p.79), com inevitáveis consequências no enfraquecimento da racionalidade de protesto. Esta ocorrência assim sucede, pois o espírito humano conforma-se com uma mera satisfação fisiológica e sensitiva. Os reflexos no consumo são evidentes, com a transmutação dos bens adquiridos em instrumentos de concretizar, mais vincadamente, o princípio do prazer, já que este não é prorrogado pelas vias normais (erotismo, satisfação das necessidades reais e não mercantis). Marcuse, por seu turno, chega mesmo a afirmar que esta satisfação não passa de «uma capa superficial sobre o medo, a frustração e o desgosto» (Marcuse, idem, p.80) latentes.

O Thanatos (pulsão da morte) vai, desse modo, tornar-se reflexo, incarnado pelos agentes sociais, «(...) da capacidade para manipular o progresso técnico, extensível à capacidade para manipular os instintos, isto é, o indivíduo satisfaz-se produtivamente» (Marcuse, idem, p.82) [itálicos da nossa autoria]. Por outras palavras, a produtividade do dia-a-dia é a pedra de toque da satisfação do sujeito, que entra num ciclo de consumo recíproco: o instinto, então exacerbado, procura o equilíbrio – entre o princípio da realidade e do prazer – através do consumo (efémero) de bens à sua disposição no mercado. Por sua vez, este consumo é efeito da produção industrial e capitalista, que precisa desse consumo para realizar valor (transformação da mais-valia incorporada no produto final do trabalho, em lucro) com a venda de mercadorias.

Neste âmbito, a teoria da alienação (ou do estranhamento) do jovem Marx acrescenta importantes contributos à crítica do homo economicus: «a extensão dos produtos e das necessidades tornam-no [ao indivíduo] escravo inventivo e sempre calculista de apetites inumanos, refinados, inaturais e imaginários – a propriedade privada não sabe tornar a necessidade rude numa necessidade humana» (Marx, 1994, p.129).

Rematando este ensaio, importa perceber a importância desta obra para uma compreensão mais cabal dos efeitos perversos que o modo de produção capitalista provoca nas classes assalariadas, nos excluídos, nos desempregados. Contudo, Marcuse é manifestamente insuficiente na crítica que faz ao capitalismo (confundido, em primeira mão com a sociedade industrial), porque se oferece interessantes instrumentos para a constituição de uma teoria da dominação, há que os fundear numa teoria da exploração – primordial face à dominância do económico numa formação social capitalista – como Marx (tão bem) o fez. Sem interligar e articular as diversas instâncias, com referência ao processo de produção de mais-valia, qualquer tentativa para perceber a fundo os fenómenos sociais e encontrar vectores possíveis de engendrar novas relações sociais afigura-se, estamos em crer, pobre e parcial.


Referências bibliográficas



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Notas:

[1] Que também podemos considerar como uma introdução do livro e da matriz teórica subjacente à redacção desta obra.




[2] Atente-se no enfatizar contínuo da homogeneização dos consumos. Desde o mesmo programa de televisão ao mesmo local de férias, toda uma série de práticas sociais são consideradas como a-classistas. Ora, Bourdieu demonstrou que isto não se passa exactamente assim: «a cada classe de posições [no espaço social composto pela combinação de capital económico e cultural] corresponde uma classe de habitus (ou de gostos) produzidos pelos condicionamentos sociais associados à condição correspondente e, por intermédio destes habitus e das suas capacidades generativas, um conjunto sistemático de bens e de propriedades, unidos entre si por uma afinidade de estilo» (Bourdieu, 2001, p.9). Sintetizando, pode-se afirmar que a diferentes práticas e consumos culturais pelas várias classes e fracções de classe, corresponde uma matriz simbólica que recobre e dá um carácter de unidade às acções dos agentes sociais: a ideologia dominante numa dada formação social. No caso das sociedades capitalistas, encontramos o individualismo como a forma mais acabada de dominação ideológica.



[3] Castells, quarenta anos mais tarde, vai defender – especificando estas teses numa tecnologia própria – que a Internet «(...) é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa das novas sociedades (...)» (Castells, 2004).



[4] Não deixa de ser curioso verificar a desfocagem epistemológica do autor, em torno da centralidade do trabalho, para uma posterior recolocação do núcleo da sua análise na tecnologia. Elucidativo deste movimento é a seguinte afirmação retirada de “Razão e Revolução”: «(...) o processo de trabalho determina a totalidade da existência humana e, pois, constitui o modelo básico da sociedade» (Marcuse, 1969, p.268), em absoluta contradição com as teses da uni-dimensionalidade.



[5] Contudo, de um ponto de vista epistemológico, Herbert Marcuse rejeita o empirismo, derivado do pensamento uni-dimensional. A uni-dimensionalidade lógico-cognitiva presente na «(...) redução e no repelir do universo do discurso dos temas deste universo [das sociedades industriais]» (Marcuse, 2002, p.14) tem consequências nas próprias mentes dos intelectuais. Estes não se propõem fazer mais do que «representações de operações particulares no tratamento dos conceitos» (Marcuse, idem, ibidem), isto é, passam a conceber o fenómeno social como «(...) por si e em si, e a constituir na imediatez do seu aparecer empírico, a totalidade do próprio ser» (Moura, 1997, p. 77). Ressalta a ideia de que o indagar da complexidade e interpenetração da múltiplas linhas axiais de causalidade diferenciada é menorizada em relação a uma mera facticidade aparente de um registo observado momentaneamente. Resumindo, Marcuse, neste âmbito, trabalha bem a negação do empirismo e desenvolve conceitos tendentes a uma radicalidade social, apesar das insuficiências já apontadas.



[6] Marcuse critica correctamente, a conciliação e o reformismo dos Partidos Comunistas ocidentais à ordem vigente, quando afirma que «fortes Partidos [Comunistas] em França e Itália, tornaram-se testemunhas da tendência geral ao aderirem a um programa mínimo que abandona a perspectiva revolucionária do poder e se adequa às regras do jogo parlamentar» (Marcuse, idem, p.23), apesar de nunca oferecer um paradigma alternativo ao cortejo de exploração, exclusão e barbárie capitalistas, sintoma da sua incapacidade de romper cabal e completamente com a cortina de fumo da ideologia dominante.



[7] Autonomia que, diga-se em boa verdade, não é contemplada por Marcuse, na medida em que reduz todas as dimensões da sociedade a um epifenómeno da tecnologia, que surge como algo de transcendental às próprias relações sociais que, na base, estipulam os formatos de aplicação da tecnologia no real.



[8] Por colocar a primazia, de forma unilateral, no desenvolvimento das forças produtivas sobre as relações e interacções que os homens estabelecem entre si e com o meio ambiente, Marcuse acusa a teoria clássica marxista de congeminar que «(...) o proletariado destrói o aparato político do capitalismo, mas mantém o aparato tecnológico» (Marcuse, idem, p.24) inalterado. Esta apreciação que o próprio Max Weber enunciou na crítica ao materialismo histórico, é infirmada por um dos mais importantes pensadores (e dirigentes políticos) marxistas da primeira metade do século XX – Nicolai Bukharine – que condensa a visão marxiana no que toca à (falsa) neutralidade tecnológica, ao fazer notar a «(...) revolucionarização dos métodos técnicos, a modificação e a rápida melhoria da técnica social racionalizada» (Bukharine, 1974, p.43), numa sociedade socialista.



[9] O alto funcionário da administração de Lyndon Johnson, Walter Rostow não diria melhor, quando generaliza uma sequência de etapas definidas a priori e aplicáveis a todos os contextos sócio-económicos e que deveriam ser copiadas por todas as nações. Aqui prevalece a noção de um fixo modelo de desenvolvimento, assente na especialização produtiva (Rostow, 1963).



[10] Todavia não devemos esquecer as chacinas que alguns dos mais proeminentes e “democráticos” Estados-Providência realizaram no pós-guerra. Basta olhar, por exemplo, para a guerra que a França protagonizou na Argélia, nos anos 50, contra a independência daquele país africano, provocando mais de um milhão de mortos. Outras guerras poderiam ser mencionadas como a do Vietname (três milhões de mortos), ou o apoio que os EUA deram na implementação das ditaduras militares na América Latina (Argentina, Chile, Brasil).



[11] Os conselhos operários enquanto forma avançada de poder político e económico da classe proletária, têm a característica fundamental de a «(...) fonte de poder não estar numa lei previamente discutida e aprovada pelo parlamento, mas na iniciativa directa das massas populares partindo de baixo e à escala local, pelo poder imediato do próprio povo» (Lenine, 1978, p.18).



[12] Não podemos deixar de referir um episódio delicioso relativo à história deste quadro. Em 1940, quando os nazis conquistam Paris, uma patrulha, entre muitas outras, dirige-se ao atelier de Pablo Picasso. Chegados lá, um oficial interpela o pintor acerca de “Guernica”: «Foi você que fez isto?», ao que o artista espanhol retorquiu, com um notável sentido de humor e uma fina ironia: «Não! Foram vocês!».



[13] Um dos grandes dramaturgos do século XX, autor de obras como “O Círculo do Giz Caucasiano”, “Miséria e Esplendor do III Reich” ou “Mãe Coragem”, Brecht proponha um teatro esteticamente inovador e que, paralelamente, apela-se à racionalidade do espectador. Em Portugal autores como Luís de Sttau Monteiro, Bernardo Santareno ou Luiz Francisco Rebello, ou encenadores como Joaquim Benite (actual director do Festival Internacional de Almada) foram os mais destacados seguidores das propostas brechtianas.


Recensão da obra de Herbert Marcuse, "O Homem Unidimensional" ( II )



Por: João Valente Aguiar

Recensão da obra One-dimensional man de Herbert Marcuse: MARCUSE, Herbert (2002 [1964]) – One-dimensional man. London: Routledge. ISBN 0-415-28977-7. p.3-86
                                               
                                 II Capítulo

No segundo capítulo da sua obra, Marcuse vai debruçar-se sobre o “fechamento do universo político”. Este fechamento é sintetizado na «(...) possibilidade de pacificação nos campos dos ganhos técnicos e intelectuais. Aí, a sociedade industrial moderna fecha-se a si mesma contra a alternativa» (Marcuse, idem, p.21). Paul Mattick, num ensaio de crítica a Marcuse, descreve as teses daquele como «(...) o suposto sucesso do sistema capitalista em canalizar os antagonismos num sentido em que os pode manipular, (...) tanto material como ideologicamente (...)», retirando as consequências teóricas (e políticas) do postulado marcusiano: «(...) é como se uma suposta sociedade sem classes estivesse a emergir na sociedade de classes, como se os antigos antagonistas[6] estivessem agora num interesse na preservação e equilíbrio do status quo institucional» (Mattick, 1972).




A questão do fechamento do sistema revela, quanto a nós, dois tipos de insuficiências fundamentais. Em primeiro lugar, no que concerne à topografia espacial de uma formação social, Marcuse adopta uma posição de defesa de uma totalidade social estruturada em vários níveis de acção social (cultura, política, economia) equivalentes entre si, girando em torno do primado da tecnologia. Em nosso entender, partindo da dominância do campo económico numa formação social capitalista, há que percepcionar a hierarquização das instâncias sociais (Poulantzas, 1978), no sistema social global.



Num segundo nível de análise referente às coordenadas temporais de articulação das instâncias (ou dos campos), há que tomar em linha de conta o evidenciar do lugar da diferenciada «(...) periodização entre [por exemplo] as instâncias política e económica» (Poulantzas, 1978, p.238). Assim, poderemos perceber a autonomia relativa do campo político (face ao económico), porque se encontra marcado por diferentes ritmos e dinâmicas de funcionamento. Todo este depósito de postulados teóricos demonstra, por um lado, uma certa autonomia[7] da luta de classes política em relação à económica (e à tecnologia) e, por outro lado, a capacidade – em determinadas circunstâncias específicas como a simultaneidade de uma crise em várias instâncias ou níveis sociais – de romper o ciclo do fechamento.



De seguida, o pensador germânico, imbuído de uma dose substancial de pessimismo na possibilidade de delinear linhas diversificadas e complexas de libertar o ser humano do ciclo de valorização do capital, vai enunciar o que considera serem três das grandes transformações que estariam na base da repressão da mudança social[8] – processo que, como já vimos, está no cerne do fechamento do campo político.



A primeira grande transformação, para Marcuse, seria a evidência de que «a mecanização está a reduzir a quantidade e intensidade de energia física gasta sob a forma de trabalho» com efeitos importantes na «(...) incorporação [dos trabalhadores] na comunidade tecnológica da população administrada» (Marcuse, idem, p.26-28). Se a enunciação das causas são, em parte, correctas, a coincidência de posições entre as classes operárias e a burguesia, camufla a importância do trabalho vivo (o proletariado expandido) na produção de valor e o seu rebaixamento à condição de subordinado e prisioneiro da relação de exploração de trabalho não pago. Marx é quem, por seu lado, imprime uma crítica tenaz ao modo de produção capitalista e permite entrever a cisão entre a classe que vive da venda da sua força de trabalho e a classe que acumula capital: «o capital é trabalho morto [capital constante: a maquinaria acumulada posse da classe dominante] que apenas se anima, à maneira de um vampiro, pela sucção de trabalho vivo, e que vive tanto mais quanto mais dele sugar. O tempo durante o qual o operário trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho por ele comprada» (Marx, 1990, p. 264). Sem grandes dúvidas, acaba-se por rejeitar a unidade e compromisso do proletariado com a burguesia, afirmando o seu antagonismo social de classe.



A transformação número dois diz respeito «(...) aos sectores-chave da indústria, aonde a força de trabalho de colarinho azul está em declínio em relação aos elementos de colarinho branco e o número de trabalhadores não produtivos aumenta» (Marcuse, idem, p.30). Mais uma vez, não estamos de acordo com Marcuse. Se é verdade que o operariado industrial da era fordista, da grande unidade fabril, diminuiu nos países do centro do sistema-mundo capitalista, ele não deixou de assumir proporções crescentemente significativas em zonas de periferias recém-industrializadas (México, Brasil, Índia, África do Sul, Europa de Leste). Em paralelo, o crescimento dos sectores de serviços não comprova o fim das classes trabalhadoras mas, pelo contrário, acentua a sua expansão na sociedade a sectores de actividade económica anteriormente não sujeitos a assalariamento. Ou seja, o número de indivíduos que têm de vender a sua capacidade física e intelectual para produzir unidades de valor de uso (com um determinado valor de troca incorporado), em troca de um salário a fim de subsistirem enquanto seres humanos tem aumentado.



Por outro lado, Marcuse não faz qualquer tipo de distinção no seio dos “colarinhos brancos”. A diferenciação entre os trabalhadores dos serviços não é efectuada o que leva a pôr no mesmo tabuleiro o executivo de uma multinacional (tarefa de gestão de uma empresa), a secretária que introduz dados num computador (tarefa não-manual, nada criativa, para além de ser monótona e repetitiva) ou o programador de software para um sistema informático de uma empresa (tarefa intelectual e criativa, produtora de conteúdos, se bem que imateriais).



A terceira grande transformação apontada por Marcuse é uma consequência da primeira e manifesta-se na «integração social e cultural das classes laboriosas na sociedade capitalista» (Marcuse, idem, p.32). Pensamos que já criticamos suficientemente esta visão do mundo – que resvala tendencionalmente para expressões canhestras que propugnam que, segundo a fina teoria de Marx, o «(...) homem não pertence a nenhuma classe, que nem sequer pertence à realidade, que pertence apenas ao céu da fantasmagoria filosófica» (Marx, 1975, p.93) – pelo que não nos vamos deter aqui.



A conclusão das três transformações recenseadas por Marcuse desemboca «(...) no enfraquecimento da posição negativa [de contestação e revolta] da classe operária, e não mais aparece como a contradição viva da sociedade estabelecida» (Marcuse, idem, p.35). Não somos apologistas de Marcuse mas importa assinalar a seguinte “separação de águas”. Marcuse rejeita o carácter revolucionário das classes dominadas, não porque, como hoje em dia determinados demagogos defendem que vivemos no “melhor dos mundos” e que isso da emancipação humana – como resultado do fim das sociedades de classes – é irrealista. Marcuse, pelo que lhe toca, vê a sua “recusa” de apalpar terrenos de superação da actualidade vigente porque «os escravos da civilização industrial são escravos sublimados» (Marcuse, idem, p.36), quer dizer, o autor considera que os dominados estão tão alienados (e por isso incorporados no sistema), que não se conseguem libertar das amarras do capitalismo.



Em contradição com Marcuse, Lukacs suporta a ideia que «na sua imediatidade [à superfície], a realidade objectiva do ser social é a “mesma” para o proletariado e para a burguesia. Mas isso não impede que, como consequência das diferentes posições que ocupam as duas classes no “mesmo” processo económico, venham a ser fundamentalmente diversas as categorias específicas da mediação [as estruturas sociais] por meio das quais a realidade puramente imediata se transforma para ambas na realidade objectivamente propriamente dita» (Lukacs citado por Frederico, 1997, p.169). Esta explanação de Lukacs pode ser descodificada da sua linguagem mais hermética e, a partir daí, podemos atender a uma importante distinção invocada entre a aparência – proletariado e burguesia supostamente em igualdade de circunstâncias sociais e económicas numa dada formação social – e a essência – tanto o proletariado como a burguesia têm pressupostos de visão e divisão do mundo opostos, derivados do seu diferenciado lugar que ocupam no espaço social, a vários níveis (relações de produção assentes no despojamento do operário do seu produto de trabalho; exclusão do controlo do poder de Estado; diferente acesso a bens culturais).



Após a identificação da repressão da mudança social, Marcuse volta-se para o questionar das perspectivas dessa repressão. Para isso, recorre ao esquema da base e da superestrutura de Marx – de forma unilateral como iremos observar mais à frente – de modo a realçar o constante reequilíbrio e unidade das sociedades industriais.



Na base material encontramos o progresso técnico, e os esforços do sistema social «(...) para se ver livre do excesso de capacidade, para criar a necessidade de se comprarem os bens que devem ser vendidos de forma lucrativa». As consequências desta forma de organização da base material vão ganhar forma na «total administração e total dependência na administração pelos regulamentos [o Estado] e a gestão privada [publicidade, mass media] que aumentam a harmonia pré-estabelecida entre o interesse das grandes corporações públicas e privadas, e o mesmo interesse dos consumidores e dos trabalhadores» (Marcuse, idem, p.38). Os limites desta concepção encontram-se em dois planos: 1) o já referido fechamento do sistema instilador de uma homogeneidade dos interesses opostos; 2) a articulação infra-estrutura (aqui reduzida ao aspecto tecnológico – forças produtivas – pondo de lado as relações sociais de produção) e superestrutura é mecânica, na medida em que esta «(...) não é um simples adorno expletivo; pelo contrário, é um componente fundamental do sistema, destinada a, no âmbito deste, desempenhar os papéis específicos e diversificados que constitutivamente lhe correspondem. É neste marco que a sua autonomia relativa se insinua (...)» (Moura, 1997, p.50) [itálicos da nossa autoria].



A subordinação do espaço social (homogéneo e indiferenciado no que à distribuição de poder e arranjos de hierarquia e funções diz respeito) à acção da máquina, acarreta efeitos de imutabilidade nas reciprocidades sociais – tónus da actividade humana.



Mesmo quando Marcuse se ocupa de indagar uma socialidade nova, não deixa de focar que «numa sociedade industrial livre e madura, esta continuaria a depender da divisão do trabalho com a toda a insolvência de desigualdade de funções» (Marcuse, idem, p.47). A toada repetitiva na cristalização e naturalização das sociedades industriais, no que à sua potencialidade de reconfiguração social diz respeito, significa, porventura, o pessimismo do autor em meados dos anos 60, quando confrontado com o recuo da radicalidade das organizações políticas das classes trabalhadoras (enleadas na procura da conciliação e institucionalização da movimentação sindical e partidária vis-à-vis ao Estado) e com a sucessiva vaga de derrotas do movimento operário face ao avanço mundial dos intricados e cada vez mais insidiosos mecanismos de submissão e /ou repressão do “mundo do trabalho” aos imperativos do lucro.



No que toca à análise das sociedades periféricas (ou subdesenvolvidas), Marcuse vai tecer considerações bastante dúbias e que são muito pouco contestatárias do pensamento liberal dominante. Dizemos isto porque quando o então professor na Universidade da Califórnia (São Diego) assinala que «(...) o terrível nível de vida [no Terceiro Mundo] demanda a mecanização e estandardização em massa da produção[9] e distribuição» (Marcuse, idem, p.50) [itálicos da nossa autoria]. Por outras palavras, Marcuse cai no eurocentrismo, porque herda «(...) certa percepção evolucionista que (...) propõe uma homogeneização do mundo que o capitalismo não pode realizar (...)» e, simultaneamente, não se consegue livrar da ganga do desenvolvimentismo típico da linha preconizada pela Conferência dos países não-alinhados de Bandung (1955), já que «nega-se a relacionar as características fundamentais do capitalismo realmente existente com a polarização centros/periferias» (Amin, 1999, p.82-83). O mesmo é dizer que omite o enjaulamento da periferia relativamente ao centro da economia-mundo capitalista, assente nos mecanismos da troca desigual, da dívida externa, no não acesso a tecnologia de ponta, no fechar das fronteiras do centro do sistema à entrada em massa de mão-de-obra imigrante, às guerras imperialistas de rapinas dos recursos naturais (Iraque, Afeganistão, etc.), à sustentação de Estados clientelares das potências centrais.



O Estado-Providência também é alvo da atenção da atenção de Marcuse. A sua análise vai centrar-se no «(...) contrabalançar dos poderes (...)» existentes no seio do próprio Estado. Apesar de apontar o seu «(...) padrão de administração da vida, de regulamentação sufocante e persistente das sociabilidades», o Estado-Providência é reconhecido, paradoxalmente, como o melhor possível para a humanidade nas sociedades industriais, porque a «(...) sociedade é um sistema com instituições em competição [Estado com a igreja; tribunais com o poder governamental] que, dada a sua amplitude de pluralismo, uma instituição pode proteger um indivíduo de outra» (Marcuse, idem, p.52-54). De facto, não se compreende como Marcuse define, por um lado, o Estado em termos basicamente correctos – pelo menos ao nível dos efeitos nefastos sobre os seus cidadãos – ao corroborar com o seguinte enunciado: « o Estado forma um tremendo corpo parasita que cobre como uma membrana o corpo da sociedade e lhe tapa todos os poros» (Marx citado por Thomas, 2003, p.60), para depois se socorrer do Estado para garantir as liberdades que... o próprio Estado é causa! Se é evidente que o Estado-Providência (ou do Bem-Estar) não comporta tendências tão exacerbadas de violência física e de uso da força[10] contra as classes dominadas como o Estado fascista, ele não deixa de impedir o controlo dos meios de trabalho e da vida por parte das classes que vivem da venda da sua força de trabalho. Isto porque o Estado, independentemente da forma que tomar, é o mais potente instrumento da desorganização política e ideológica do proletariado (Poulantzas, 1978). O Estado é determinante para o isolamento da luta proletária na esfera económica, a partir de reivindicações e palavras de ordem acerca de problemas imediatos, relegando, quando não desconsiderando completamente, a luta política contra o Estado, contra o centro de organização política da burguesia (ver ensaio V). A luta (económica) acaba por ser integrada nos limites do sistema, actuando como alavanca de regulação de conflitos sociais pelo Estado. Assim, Marcuse entra em contradição com o que avançou no início da sua obra, quando dizia que «a eleição livre dos mestres não vai abolir os mestres ou os escravos» (Marcuse, idem, p.10).



Estamos, com efeito, perante um autor radical que rejeita as consequências mais gravosas e indefensáveis da civilização capitalista, mas que recua perante a necessidade e possibilidade de superar [Aufhebung] o sistema social dominante na actualidade. Instado a problematizar «(...) no sentido de desenvolvimento de arregimentação do mercado, se a competição alivia ou intensifica a corrida por uma maior e mais rápida obsolescência dos bens produzidos; se os partidos políticos competem pela pacificação ou pelo incremento dos gastos militares (...)» (Marcuse, idem, p.55), o autor sucumbe, enredado numa tensão perene entre a crítica e a resignação: «a democracia parece ser o sistema mais eficiente de dominação» (Marcuse, idem, p.56). Quer dizer, o dito Estado “democrático” é responsável por uma série de atrocidades, mas dada a sua eficácia estrutural para reproduzir a produção de capital é assumido, por Herbert Marcuse, como insuperável!



Portanto, Marcuse tem noção do carácter intrinsecamente perverso do tipo capitalista de Estado, contudo, vê nele – prenúncio da vaga pós-modernista?; germes da Nova Esquerda, posteriormente institucionalizada e ligada à reprodução da ordem social? – o fim último das formas de organização política da humanidade.



No final deste capítulo, Marcuse avança com o desígnio da pacificação e unificação entre as duas superpotências da época – EUA e URSS – rumo a um governo mundial. Para além de a História não lhe ter dado razão – face à desagregação da União Soviética em 1991 – Marcuse “sonhava” com uma interpenetração utópica entre «(...) as sociedades capitalistas e as sociedades comunistas contemporâneas» (Marcuse, idem, p.57).



Ora, não podemos concordar com a classificação de senso comum atribuída à ex-URSS (e os países do Bloco de Leste) de país(es) comunista(s). O que encontrá(va)mos naqueles Estados do “socialismo real” era uma completa descaracterização do projecto comunista e mais não foram do que processos de instauração do modo de produção capitalista, com a diferença relativamente ao Ocidente associada ao papel atribuído ao Estado (em detrimento do mercado) para protagonizar a acumulação de capital. Instauração do capitalismo (de Estado) conseguida, ao longo de um extenso período de tempo, através de sucessivas derrotas das classes trabalhadoras. Estas, até meados dos anos 20, organizadas nos seus orgãos de poder operário – os conselhos operários[11] – foram vencidas pela acção das burocracias estatais que abafaram a sua capacidade de iniciativa. Não é por acaso que Staline, e a sua camarilha de tecnocratas, assassinaram grande parte dos revolucionários que protagonizaram a Revolução de Outubro.

Recensão da obra de Herbert Marcuse, "O Homem Unidimensional" ( I )


Por: João Valente Aguiar

Recensão da obra One-dimensional man de Herbert Marcuse: MARCUSE, Herbert (2002 [1964]) – One-dimensional man. London: Routledge. ISBN 0-415-28977-7. p.3-86

                                     I Capítulo

A publicação de “Homem Uni-Dimensional” (1964), foi um dos marcos intelectuais da segunda metade do século XX. Herdeiro e ex-membro da Escola de Frankfurt, onde pontificaram nomes como Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer ou Erich Fromm, Marcuse vai adoptar o marxismo numa linhagem muito diferente da cartilha soviética. Esta especificidade do percurso de Marcuse – que convém destacar a sua descoincidência do marxismo mais clássico de Lukacs ou, noutro nível, de Althusser – vai estar na origem, entre outros autores, da chamada Nova Esquerda. Mais à frente, voltaremos às implicações de Marcuse no desenvolvimento desta corrente política contemporânea. Para já, importa analisar o que o autor denomina de “sociedade uni-dimensional”, título da primeira parte desta obra.


Vivenciando o período dos chamados “30 anos gloriosos”, correspondentes a uma época histórica conhecida pela consolidação do Estado Providência e do clímax do fordismo enquanto forma de adequação da base tecnológica da grande fábrica à base económica do trabalho assalariado, Marcuse vai reflectir acerca da forma como o «indivíduo pode ser libertado do mundo do trabalho que lhe impõe necessidades alienantes» (Marcuse, 2002, p.5).



Na origem da alienação do ser humano, encontra-se a «forma como a base tecnológica está organizada nas sociedades industriais» (Marcuse, idem, p.5). A atribuição do primado da tecnologia na realidade social é ainda mais enfatizado quando o autor considera que o governo das sociedades industriais só é conseguido a partir «do uso organizado da tecnologia e da produtividade científica» (Marcuse, idem, p.6), ou seja, percebe-se a subordinação do poder político à máquina.



Portanto, neste primeiro capítulo: “As novas formas de controlo”[1], Marcuse vai, então, procurar fazer a crítica do controlo social como «a necessidade [para o sistema social] de manter liberdades tão ilusórias como a competição livre entre pessoas a um determinado preço, a liberdade de imprensa com censores contidos nela mesma, a livre escolha entre a marca x e a marca y» (Marcuse, idem, p.9). Deste modo percebe-se que a liberdade do indivíduo não é a múltipla escolha limitada a um stock pré-existente de alternativas iguais entre si, mas o que esse indivíduo de facto escolhe. Isto é, a «eleição livre dos mestres não vai abolir os mestres ou os escravos» (Marcuse, idem, p.10).



Contudo, Marcuse não vai operar uma crítica a esta falsa alternativa. Ao considerar que a equalização[2] das distinções de classe é um facto, a orientação da sua análise vai ser conduzida para a estrutura técnica e para a eficácia do aparato produtivo. Daqui resulta que o controlo tecnológico aparece como a causa e o motor da actividade social.



Este determinismo tecnológico, estamos em crer, funcionará, anos mais tarde, para a teorização de Negri acerca da sociedade-fábrica. Marcuse ao falar na «(...) invasão do espaço privado pela tecnologia», porque a «(...) produção em massa engloba o indivíduo no seu todo, mostrando ter deixado de estar confinada à fábrica» (Marcuse, idem, p.10), vai abrir portas às concepções metafísicas de António Negri – pensador italiano que tem feito furor em grande parte da esquerda ocidental com o livro Império – assentes na extensão das redes comunicacionais a todas as esferas sociais, onde tudo é consumo e produção.



Esta suposta fluidez entre as várias instâncias sociais criaria uma sociedade homogénea, onde o poder não está em lado nenhum porque está em toda a parte. No fundo, esta diluição das relações de poder no seio da sociedade mais não é do que a ocultação da contradição fundamental existente no campo económico: o antagonismo trabalho-capital. Sem dúvida que há relações de poder que perpassam todo o mundo social. Porém, a redução do espaço social total ao fenómeno de poder, omite a gradação na concentração do poder em diferentes campos sociais (por exemplo, o Estado é dotado de tipos de poder simbólico – já para não falar na coerção física – que não se encontram no campo das produções culturais).



O postulado marcusiano de que a tecnologia[3] penetra o corpo social em todas as suas dimensões sociais e as manipula, esquece as relações sociais que, por sua vez, permitem o enorme desenvolvimento tecnológico das sociedades industriais.



As sociedades industriais são, antes de mais, sociedades capitalistas. Quer isto dizer que aquilo que os indivíduos e as sociedades são, «(...) coincide com a sua produção, com o que produzem e também como produzem» (Marx, 1983a, p.9). Na verdade, resultam da forma como se colocam entre si na produção e distribuição perante os meios de produção económicos, políticos e culturais. Marx percebeu que «(...) é a repartição desigual, qualitativa e quantitativa do trabalho e dos seus produtos e, portanto, a propriedade» (Marx, idem, p.24) – ao separar os membros de uma sociedade em proprietários dos instrumentos de trabalho e seus usufrutuários para a produção de riquezas sociais (o valor) – é o germe que vai permitir o maior ou menor desenvolvimento das forças produtivas: tecnologia e maquinaria modernas. Trata-se da inscrição da tecnologia no lugar, no contexto próprio do estado de desenvolvimento das relações de produção. Assim, percebe-se a tecnologia em sede de dialogia dialéctica com as relações sociais de produção, constituindo uma certa autonomia relativa. Por conseguinte, retira-se a seguinte conclusão: a Internet, um robot ou um automóvel não têm em si uma capacidade de alienar os agentes sociais. Pelo contrário, é o uso social e a posição que determinado sujeito tem perante a máquina que pressupõe o domínio do homem pela técnica. Recorrendo a um exemplo concreto. Um trabalhador de uma fábrica de automóveis está numa situação de alienação ou estranhamento [Entfremdung] porque a sua actividade no local de trabalho está rebaixada a uma condição de apêndice da máquina, em ordem a produzir mais-valia. Como o princípio que governa o funcionamento das formações sociais contemporâneas – D-M-D’ – é a produção de valores de troca, em detrimento da satisfação das necessidades humanas, o trabalhador encontra-se destituído do controlo do processo de produção de bens. Portanto, o seu posicionamento relativamente à maquinaria é a de uma peça na engrenagem na criação de valor. Valor realizado no mercado e apropriado pelo capitalista.



Como corolário entendemos que a tecnologia é um instrumento mediador de uma relação social – o trabalho alienado – que a molda e lhe dá contornos mais ou menos aparentes, mas que não é o seu pressuposto de base. É um meio de concretização da relação de exploração do trabalho humano e não a essência da alienação.



É certo que Marcuse assume uma veia contestatária ao que se convencionou chamar de ordem vigente, mas – fruto da sua posição ontológica assumida na forma como se estruturam as sociedades[4] – a sua crítica fica-se pelas balizas do modo de produção capitalista, não procurando entrever eixos da sua superação e não expondo, ao mesmo tempo, alternativas societais[5].



Daí que a movimentação teórica do autor desemboque nos «(...) esforços do livre pensamento» e da «subversão radical do progresso tecnológico», a partir do nó górdio «da automação da produção» (Marcuse, idem, p.18), que libertaria tempo livre para usufruto dos indivíduos. Mais uma vez concordamos apenas parcialmente com Marcuse. Provavelmente porque o autor, por ter uma raiz marcadamente filosófica, não procura esmiuçar mais os conceitos que apresenta, tendo em vista uma mais profícua operacionalização. Por isso, entendemos que falta precisar melhor estes enunciados teóricos de Marcuse. Quer dizer, não é a automação – em traços gerais não é mais do que a crescente incorporação de capital fixo na produção de mercadorias – em si que determina um grau superior de tempo livre e de liberdade para as classes dominadas. Se assim fosse, num país pioneiro (e ainda hoje à frente no que diz respeito à robotização de largos sectores da produção) na implementação da automação, como é o caso do Japão, não se teria aumentado o horário semanal de trabalho das 48 para as 52 horas. A automação da produção só libertará tempo disponível para o ser humano num quadro e num contexto societal ausente da divisão manual e intelectual do trabalho e da subordinação do trabalho vivo (o trabalho proletário) ao trabalho morto (a acumulação incessante de capital).



Aí, as forças produtivas estarão ao serviço da humanidade como instrumentos capazes de impulsionar a criatividade intelectual e a destreza prática a um patamar qualitativamente mais elevado.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Hippopotamus Herbert: Marcuse and Revolution in Paradise

 Herbert Marcuse (1898-1979), autor de "homem unidimensional, Razão e Revolução, Eros e Civilização, entre outros livros, professor de filosofia na Universidade da Califórnia em San Diego,  influente para o movimento estudantil em todo o mundo durante os anos sessenta e setenta. Este documentário passa em revista a vida turbulenta na Califórnia, misturando imagens de arquivo, entrevistas, recriado cenas e narração, relata não só a vida de Marcuse, mas também a história do protesto estudantil e activismo social. No vídeo vemos entrevistas com a aluna de Marcuse, Angela Davis, o ex-chanceler UCSD William McGill, colegas de Fredric Jameson e Reinhard Lettau, e imagens raras de Marcuse com o ex-governador da Califórnia, Ronald Reagan.

Vídeo dirigido por Paul Alexander Juutilainen
Tempo de exibição: 56:49

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